quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Formamos guerreiros políticos, não democratas

Há mais de 30 anos, a cada semestre recebo uma nova turma de alunos de 20 e poucos anos. Sou professor de comunicação política e, como a realidade tem sido nosso melhor laboratório, discutimos frequentemente a turbulenta e alucinada política nacional.

Em uma dessas conversas, sobre a radicalização do debate político no país, uma estudante reagiu com ceticismo ao meu julgamento, indagando com sinceridade: "Mas política não é sempre guerra e polarização?". Como outros alunos imediatamente concordassem, comecei a explicar que não é bem assim.

As sociedades democráticas são, sim, espaços de divergência, mas não de conflito aberto. A política envolve negociação e compromisso, e certo grau de consenso é essencial para projetos políticos comuns. O nível de intolerância, polarização e dogmatismo que atingimos recentemente não é inevitável, mas resultado de escolhas que fazemos como sociedade.


Como olhos e sorrisos, entre céticos e surpresos, acompanharam a minha explicação, o surpreendido fui eu. Como é que jovens, que estão apenas começando a entender a política de forma madura, mas já mais engajados do que gerações anteriores, normalizaram atitudes que praticamente inviabilizam o país e tornam nossa democracia mais vulnerável?

A resposta é simples, basta fazer as contas. Em 2013, quando o Brasil entrou em surto político, esses alunos tinham entre oito e nove anos. Quando a extrema direita começou a crescer no mundo, eles tinham 11 ou 12. Quando Bolsonaro assumiu, completavam 15 anos. Como poderiam ter outra noção de normalidade política se, desde que se entendem por gente, só viram conflitos abertos entre grupos que se comportam como facções, sectarismo, dogmatismo, ódio autorizado e a luta pela superioridade moral?

São pelo menos 11 anos em que a mensagem política dominante é: "Estamos em guerra, escolha um lado e lute pela sua sobrevivência". Formamos uma geração inteira de guerreiros e depois queremos que eles negociem democraticamente diferenças, usem razão e boa vontade para mediar divergências, entendam que chegar a compromissos com adversários e engolir alguns sapos em nome da tolerância são valores da democracia?

Meninos e meninas mal acordam para a política e extremistas de direita, progressistas identitários e radicais de esquerda lhes enfiam um fuzil na mão: "Vocês agora são guerreiros da justiça, identifiquem seus inimigos, atirem primeiro, argumentem depois". E, claro, todo o conhecimento de que precisam será entregue por transfusão digital, já mastigadinho por líderes e influenciadores tribais; é só engolir. Não é muito: dez dogmas condensam toda a crença necessária para formar um bom soldadinho político ou, com tintas mais nobres, um ativista empenhado em fazer do mundo um lugar melhor.

Além da fragmentação ideológica e do ódio entre grupos, a nova geração logo descobre que o slogan dos anos 60, "o pessoal é político", se materializou por completo. Todas as dimensões da vida são consideradas questões políticas em pé de igualdade com as discussões sobre políticas públicas ou questões de Estado. A distinção moderna entre o íntimo, o privado e o público desapareceu. Tudo voltou a ser público, até a intimidade. Principalmente ela.

Se tudo é política e política é guerra, todo mundo é militante e todo militante é um combatente. Se for militar, que venha armado.

Em um quadro como esse, como esperar que tolerância, pluralismo e respeito ao melhor argumento ainda sejam valores para essa nova geração?

Vocês não imaginam a aflição dos alunos quando proponho que o Brasil político seja visto como uma sala de aula, onde metade da turma não suporta a outra metade e aprendeu que precisa odiá-la do fundo do coração, mas, mesmo assim, ninguém vai sair. E agora? É possível conviver com quem você considera fascista, transfóbico, machista, gayzista, feminazi, comunista, ultraconservador ou esquerdista?

Para alguns, isso soa como o inferno, mas é o início da democracia. Mas como convencê-los desse fato se até agora aprenderam que o lado que tem razão, o próprio lado, tem o direito de ficar sozinho na sala e que o mundo não será justo até que isso aconteça?

Como ensinar essa geração a sair do abismo em que a colocamos se a litania que aprenderam a recitar todos os dias repete, como prece: "O inimigo não se normaliza, se odeia", "o outro lado deve ser convertido ou destruído", "se temos razão, não há que escutar o outro lado", "se ameaça a minha existência, eu serei resistência"?

Formamos guerreiros políticos, não democratas.

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