segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Humanoides clínicos

O American Board of Internal Medicine (Abim), entidade semelhante ao Conselho Federal de Medicina, no Brasil, revogou a certificação de dois médicos americanos conhecidos por liderar uma organização que promove a ivermectina como tratamento para Covid-19. A notícia tem relevância comparativa na profissão médica brasileira, onde acontece preocupante fissura qualitativa entre o nível da prática e o da instituição.

É o que revela a recente eleição no Conselho Federal de Medicina, vencida pelo bloco antiaborto, comprometido com o inútil receituário da cloroquina e da ivermectina durante a pandemia, explicitamente antenado à ultradireita. Há nele quem ainda apoie a violência depredatória na Praça dos Três Poderes.


O desconcerto evoca a narrativa do austríaco Robert Musil, "O Homem sem Qualidades", em que o personagem Ulrich, sem características próprias e indiferente ao mundo, busca um sentido para a vida. Embora do século passado, trata-se de uma construção romanesca atualíssima no século 21, quando as tecnologias da comunicação avançam céleres em eficácia técnica, mas viralizam os antagonismos políticos e o retrocesso de qualidades humanas.

Não se põe em dúvida a competência da maioria dos médicos brasileiros nem a excelência de determinados hospitais, tanto no setor público como no privado. Para cá, acorrem pacientes de várias partes do mundo atraídos pelo renome profissional de muitos. Há setores de pesquisa avançada conectados a centros de referência internacionais.

É pertinente, porém, a indagação sobre se o avanço clínico e cirúrgico se faz acompanhar por desenvolvimento ético compatível. Isso significa perguntar sobre a qualidade humana desse grupo técnico indispensável à saúde coletiva. Trata-se de refletir por quê indivíduos egressos de uma formação pautada pela integridade física da espécie acolhem em termos institucionais a regressão de valores humanos. Não há hospital sem hospitalidade ética, não há clínica sem inclinação visceral para a vida.

A questão aberta é que a exacerbação do individualismo de massa sob a manufatura capitalista de vidas supérfluas leva a uma profissionalização elitista em que o ego, inflado como um balão, perde de vista a dimensão social. A universidade teria subestimado a formação de caráter, algo que se adquire. Senão, o que ocorre já seria síndrome da supremacia técnica dos robôs, humanoides sem qualidades. Mas não é nada desprezível a suspeita rasteira de que a tentativa de importar mais médicos pés no chão, cubanos ainda por cima, tenha despertado um narcisismo corporativo afim ao que há de pior na ultradireita. Em suma, mais um surto do brutalismo nacional.

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