É bom fingir que se está a fugir, que não se pode ficar em casa nem ir a lugares previsíveis, onde se pode ser apanhado.
Ir ao cinema é sempre uma fuga. É pena não haver escuridão total. Mas há horários em que se consegue estar sozinho a ver um filme.
Há lugares perto de onde vivemos - ou, melhor ainda, longe - aonde nunca fomos. É bom ser-se turista numa terra que ninguém visita.
É bom saber que ninguém nos pode localizar. Localizar está para a liberdade como conservar para as sardinhas.
Os fugitivos são, por definição - e não só nos filmes de Nicholas Ray - felizes. Fugir é bom. As responsabilidades, de que toda a gente está sempre a falar, são más para nós. Nem sequer são boas para os outros.
Fugir sem ter razão para fugir é um acto libertador de cobardia criativa. O medo é, tal como a preguiça e todas as espécies (sem distinção) de egoísmo, uma manifestação da mais elevada inteligência.
"Fica-te", dizem os escravos que absorveram os interesses dos esclavagistas. "Deixa-te ficar; contenta-te com o que tens; enfrenta aquilo que tens para enfrentar", aconselham os carrascos já derrotados da liberdade.
Os escravos verdadeiros fugiam mesmo quando corriam o risco de morrer. Que se há-de dizer dos escravos figurativos de hoje em dia que, quando fogem, só correm o risco de viver?
Desliguem-se os telemóveis. Mudem-se as coordenadas. Confundam-se as tentativas de contacto. Fugir é cada vez mais difícil mas é cada vez mais necessário.
Fujamos já!
Miguel Esteves Cardoso
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