Salman Rushdie não acredita em milagres, embora apareçam muitos em seus textos de realismo mágico. Mas foi um milagre ele ter sobrevivido a um ataque de 27 segundos e 15 facadas em Chautauqua, Nova York, no dia 12 de agosto de 2022. A última coisa que seu olho direito viu foi um homem vestido de preto, correndo na plateia em sua direção e desfechando os golpes que o levaram a muito perto da morte.
Rushdie sobreviveu com a mente intacta e escreveu um livro, “Faca: reflexões sobre um atentado”. Além de ter perdido a visão do olho direito, foi gravemente ferido na mão esquerda, no peito, no pescoço e em outros pontos do corpo. Foram 18 dias internado num centro de trauma e muitos dias em seguida num hospital especializado em recuperação em Nova York. Ele não foi salvo apenas pela perícia dos cirurgiões, mas também pelo amor de sua mulher, Eliza (Rachel Eliza Griffiths), filhos de inúmeros amigos e até desconhecidos que se solidarizaram com ele.
O atentado ocorreu 33 anos e meio depois de o aiatolá Khomeini tê-lo condenado à morte, por causa da publicação do livro “Versos satânicos”. Os 18 dias após o atentado foram terríveis. No princípio, por causa da grande quantidade de analgésicos, inclusive morfina, ele delirou sonhando com edifícios em forma de letras do alfabeto. Em seguida, vieram as centenas de incômodos com os próprios ferimentos, em muitas partes do corpo, sobretudo a mão, unidas por pontos de metal, o olho deslocado da órbita.
Nesses momentos, e em todos os outros, Salman teve ao lado a mulher, Eliza, poeta e fotógrafa americana. A coragem e o afeto dessa mulher extraordinária, o próprio Salman reconhece, foram decisivos. Não é fácil alguém se mover escapando de paparazzi, protegido por policiais desconhecidos, sempre em dúvida se aquelas longas lentes fotográficas não poderiam ser um cano de arma disfarçado
No livro, Rushdie descreve muitos procedimentos médicos, a dor da retirada dos pontos, a tristeza de saber que ficaria sem a visão num olho, o medo de ficar cego, uma vez que já tinha problemas nos olhos antes do atentado. Ele chega a descrever até a dor de receber uma sonda para fazer xixi, pois um dos remédios inibiu sua função urinária. Adverte o leitor: se você nunca recebeu uma sonda, procure se manter invicto.
Eu acrescentaria com experiência própria: se perder a invencibilidade, não o faça após ser ferido e preso numa ditadura militar. Torça por enfermeiros amigáveis.
O livro é cheio de referências literárias, menciona até “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Mas o diálogo mais significativo é com o romance de Milan Kundera “A insustentável leveza do ser”. A vida não tem reprises. Mas Salman, na verdade, ganhou uma segunda chance e a desfruta com felicidade ao lado de Eliza.
A verdade é que amigos morrem, como morreu o escritor Martin Amis; outros sofrem doenças, com paralisia, como Hanif Kureishi; e alguns já estavam com câncer, como Paul Auster, que, por sinal, morreu na semana que passou. Além de todos esses problemas, há as dificuldades no mundo. A guerra contra a Ucrânia, conduzida por um tirano, as perseguições religiosas na Índia, os perigos de retrocesso nos Estados Unidos, com a ideia de supremacia branca e masculina.
Rushdie dedica um capítulo a uma discussão imaginária com o homem que tentou matá-lo, que ele chama apenas de A. Talvez nem precisasse, mas faz uma defesa de sua atuação, até em relação aos muçulmanos, e traça um perfil do terrorista religioso, que acredita em falsos profetas, é solitário e frustrado.
A conclusão é que os escritores têm de continuar escrevendo suas histórias, que ficarão para sempre e contribuem para combater as falsas narrativas nesta era de desinformação. Um poema não detém uma bala. Mas a luta de Rushdie é um exemplo de luta pela liberdade de expressão. No dia em que foi atacado, ele faria uma conferência em apoio aos escritores perseguidos no mundo, para os quais seu amigo Henry Reese, organizador do encontro, criava um espaço amplo de refúgio. O evento — onde o terrorista, um jovem de origem libanesa, criado em Nova Jersey, apareceu com sua fúria assassina — se intitulava “Mais que um abrigo, redefinindo o lar americano”.
Portanto as facadas foram contra todos os escritores perseguidos. Alguns também atingidos diretamente pela lâmina, como o egípcio Naguib Mahfouz, esfaqueado no pescoço em 1994 por um fundamentalista islâmico.
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