— Suas expressões podem ser lidas e compreendidas em qualquer lugar do planeta — ensinava.
Na semana passada, o rosto opaco de uma gaúcha de meia-idade dizia o indizível. Estava simplesmente em choque, esvaziada da capacidade de sentir o que quer que fosse. Lembrava as imagens icônicas de soldados da Guerra da Crimeia, da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, do Vietnã, retratados em momentos de total abstração da crueza em volta.
Foi em tom monocórdio que a gaúcha Elvira Polippo contou à reportagem do portal g1 pedaços do que vivera no início da enxurrada que continua a afundar seu estado. Ela morava com o marido e o filho João numa casa de dois pisos na região do Taquari quando a enchente ameaçou engolir o imóvel. Subiram todos ao telhado. Em vão. A casa ruiu e “desceu o rio feito bala”. Mãe e filho, agarrados em entulhos, galhos e uma tampa de geladeira, só foram encontrados por socorristas voluntários cinco dias e cinco noites depois. Haviam sido arrastados 60km rio abaixo. Para João, de 35 anos, a força do viver parece intacta.
— Vai dar tudo certo — diz ele, apesar de ainda não conseguir andar.
A cirurgia de coluna que fizera antes do dilúvio inflamou na água contaminada. Para Elvira, agora também com leptospirose, o retorno à realidade será um soco. Seu marido segue desaparecido. Talvez ele venha se somar aos 165 mortos computados até agora pelas autoridades gaúchas.
Do outro lado do mundo, o corpo do brasileiro-israelense Michel Nisenbaum — um dos cerca de 250 sequestrados pelo Hamas no ataque terrorista do 7 de outubro passado — foi recuperado pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) na semana passada. Veio somar-se aos perto de 30 reféns que as FDI acreditam ter sido executados naquela ação morticida, enquanto outros cem talvez ainda vivos são usados pelo Hamas como moeda de troca para delongar ou negociar um cessar-fogo. É a barbárie plenamente escancarada que deveria nos deixar em estado de choque civilizatório. Não deixa.
Mas, como escreveu Leonard Cohen em “Beautiful losers”, “a realidade é uma possibilidade que não posso me dar ao luxo de ignorar”. E a realidade que finalmente começa a se impor no Oriente Médio foi assim resumida no jornal israelense Haaretz: “Uma coisa é certa: haverá um Estado Palestino. Local: na Palestina”.
Em artigo publicado no centenário diário, o colunista Alon Idan avisou a seus compatriotas: “Somos infantis... digo que somos tolos porque nos recusamos a aceitar o óbvio, a ver o que o mundo inteiro vê. Continuamos a agir como crianças que fecham os olhos e acreditam que, ao nada ver, a realidade não existe”. Referia-se às forças do sionismo nacional-religioso que teimam em negar a existência de um povo que se designa como palestino — isso, apesar dos 5 milhões de palestinos que vivem ali ao lado, na Cisjordânia ocupada, em Gaza, Jerusalém Oriental (além do 1,8 milhão de árabes que vivem em Israel).
Na próxima terça-feira, 28 de maio, três países europeus — Espanha, Noruega e Irlanda — deverão formalizar o reconhecimento da Palestina. Embora o ato não signifique reconhecimento a um Estado existente, apenas à possibilidade de ele vir a existir, o simbolismo será marcante por conferir legitimidade global à causa. Malta e a Eslovênia também entraram na fila, na rabeira dos 140 países (inclusive o Brasil) que já o fizeram. Por enquanto, nenhuma das grandes potências ocidentais — Estados Unidos, Reino Unido, França ou Alemanha — ainda saiu do pedestal.
Netanyahu, como esperado, sustenta que o reconhecimento da Palestina, ou um cessar-fogo, equivale a premiar as atrocidades terroristas cometidas pelo Hamas. Não é. Assim como o próprio Netanyahu, também o Hamas é oficialmente contra criar uma Palestina convivendo com Israel. O radicalismo de um se alimenta do outro. Quando a ministra israelense dos Assentamentos, Orit Strock, declara que a invasão a Gaza não deve cessar apenas “para salvar umas 22 ou 33 pessoas” — no caso, reféns há oito meses vivendo um horror —, ela se aproxima da lógica do custo-benefício em torno de vidas humanas praticada pelo Hamas.
A realidade é um choque.
“Nunca mais”, prometeram os sobreviventes do horror nazista. “Nunca mais para ninguém”, entoam seus descendentes ativistas da Jewish Voice for Peace. Assim se constroem humanidades.
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