O país, desde a segunda metade do século passado, vinha se destacando pelos crescentes índices de linchamentos e já é hoje um dos países que mais lincham no mundo: quatro a cinco linchamentos ou tentativas por dia. Pelo menos 1 milhão de brasileiros participou desses eventos em pouco mais de meio século. O justiçamento, a justiça pelas próprias mãos, já faz parte da nossa cultura cotidiana. A turba da praça dos Três Poderes vinha sendo formada há tempos.
Os linchamentos têm motivação moral, de uma moralidade decrépita e persistente, de país atrasado, baseada em velhos códigos, como as Ordenações Filipinas e as práticas da Santa Inquisição. Aqueles que ficaram residualmente inscritos na consciência social profunda de uma sociedade em que a justiça não era acessível à imensa maioria, e ainda não é, embora a injustiça estivesse e ainda está na vida cotidiana de carências e violências de grande parcela do povo.
Uma das injustiças se expressa, justamente, em atos, como os de 8 de janeiro, de uma multidão partidarizada, mas não politizada, que desconhece as instituições e suas regras, que faz política como vingança difusa contra um outro imaginário e abstrato. Os manipuláveis e descartáveis. Os pobres de espírito.
A novidade neste caso é que essa anomia estrutural desta sociedade, na intentona de 8 de janeiro, que já era o golpe em andamento, expressou-se pela primeira vez de maneira visível. Mas como ato em que a anormalidade gravíssima deu-se a ver como ato supostamente lícito, tácita ou expressamente apoiado ou coadjuvado por militares, por igrejas, por empresas, a classe média dos alienados da inclusão econômica sem inclusão política. Os órfãos de compromisso com a civilidade e com o discernimento. Uma proclamação da ignorância e do desconhecimento como um direito.
As estruturas fundamentais da sociedade brasileira foram submetidas à demolição preparatória dos atos de 8 de janeiro, entre 2019 e 2022, na educação, na religiosidade, na economia, nos valores de referência, na cultura. Como Alice no País das Maravilhas, de Carroll, quanto mais caminhamos, mais voltamos para trás.
Achamos que somos patriotas e valentões porque não percebemos que multidão delinquente tem sido aqui a institucionalização da covardia. Nos pouco mais do que 2 mil casos de linchamento que estudei, isso foi comprovado. Separei linchamentos diurnos de linchamentos noturnos e calculei o tamanho da turba e o índice de sua crueldade em cada grupo. A turba é maior e mais cruel nos linchamentos noturnos do que nos diurnos. Ou seja, quando quem lincha acha que ninguém está vendo sua cara. Sabe, portanto, que se trata de um crime.
No 8 de janeiro, isso aconteceu de outro modo. A convicção induzida de que o clamor pelo golpe de Estado tinha apoio de militares, de igrejas e de empresas foi a escuridão imaginária de que careciam para proteger-se contra o crime que sabiam estar cometendo. Certeza que tiveram ao serem acobertados e apoiados em portas de quartéis, em púlpitos de igrejas, no transporte dos patrocinadores da viagem e na infraestrutura de acampamentos.
Na enorme lista dos que estão sujeitos a julgamento e começaram a ser julgados os principais membros da multidão não estão visíveis. Quem nela esteve depredando, gritando e orando pelo golpe, e até fazendo em áreas simbólicas dos palácios aquilo que se faz na privada, não é inocente, a não ser na sociologicamente pobre concepção de que sobre o ente coletivo prevalece o indivíduo.
Desde o famoso estudo de Gustave Le Bon sobre a multidão, confirmado por inúmeros estudos em diferentes sociedades, o indivíduo não é mero cúmplice e coadjuvante do ser coletivo que nele se oculta e que irrompe com violência quando se integra na multidão, da qual sabe que se torna mente e braço.
Ele se entrega à condição de ser manipulado pelos poderes da desordem e personifica, na duração da manifestação, o ser oculto que na turba não tem senão a cara da multidão. Ele é o agente ativo dos que a divisão do trabalho político da desordem deu a função e a conveniência da invisibilidade da incitação e da manipulação de vontades alheias. É o executor de um projeto político de alienados e do avesso. O de mudar pela destruição dos recintos e objetos não pela transformação da sociedade que simbolizam.
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