segunda-feira, 14 de março de 2022

A guerra mundial contra os fatos

Vladimir Putin é um tirano bonapartista, típico do século 19. Para ele, a prosperidade só vem com o alargamento dos domínios territoriais. Exibicionista, proclama que seus armamentos são maiores que os dos outros. Aboletado no Executivo, atropela o Legislativo, subjuga o Judiciário e banca o pai forte do povo, passando por cima das mediações da democracia.

Outra faceta do autocrata de Moscou é sua obsessão por idolatrar o passado. O futuro dos sonhos dele é a restauração de uma fantasiosa glória pretérita (a sua “grande Rússia” parece o decalque de um mapa mistificado do século 18). Na verdade, mais do que bonapartista, seu ideário tem marcas de fascismo bruto.


Já se disse que a ambição do presidente russo poderia ser sintetizada no bordão “make Russia great again”. A boutade procede. O sujeito tem ares de um Trump em cenários de KGB, um Trump sem freios nem contrapesos. Aliás, ele faz tudo o que Trump gostaria de fazer e não consegue. Para trazer a conversa um pouco mais aqui para o nosso lado, ele é tudo o que Jair Bolsonaro gostaria de ser e jamais conseguirá ser. O russo parece um destes vilões trilionários de filme de 007, enquanto o presidente brasileiro nunca passou de lobisomem chinfrim de comédia de Mazzaropi. Vai daí que, tolerado pela China, bajulado pela Venezuela e elogiado discretamente por Trump, Putin é secretamente invejado pelo inquilino do Palácio da Alvorada.

Em resumo, quando o assunto é Vladimir Putin, figuras que parecem não ter nada em comum, como Maduro e Bolsonaro, entram num balé sincronizado. Por que será? O que faz vibrar na mesma frequência o trumpismo dos terraplanistas e o confucionismo maoísta do Partido Comunista Chinês? Por que os autocratas de Caracas, que enchem a boca para falar em “guerra anti-imperialista”, ganham eco no Palácio do Planalto, cujos ocupantes discursam em nome de “Deus” e da “família”? Que eixo transcontinental é este, tortuoso e rijo, que alinha corpos terrestres tão díspares?

As respostas para tais perguntas costumam denunciar equívocos nas análises de uns e outros, como se o apoio ao tirano russo decorresse de um defeito da razão ou de equívocos involuntários. Essas respostas têm sentido, claro, mas talvez não sejam a melhor explicação. É mais provável que o eixo libidinal do putinismo não tenha nada que ver com a razão – nada que ver com Otan, com fertilizantes, com petróleo, agronegócio ou geopolítica –, mas com o desejo. Os fãs de Putin, por mais arestas que tenham entre si, cultivam o mesmo ódio apaixonado e selvagem contra o que a civilização nos legou de melhor: o pensamento crítico, a liberdade em feitio de fraternidade e o primado da verdade de fato, também conhecida como verdade factual.

Eis por que estes brucutus que não sabem a diferença entre Crimeia e cremalheira se excitam diante das atrocidades milimetricamente calculadas pelo artífice da invasão armada da Ucrânia, que já matou aproximadamente 500 civis e já provocou a fuga de 2 milhões de pessoas. Putin angaria os fãs que tem – amuados ou ruidosos – não apesar de assassinar inocentes, mas justamente por não ter hesitação em dizimar quem quer que seja. Seu poder de atração não vem de um cálculo estratégico frio, mas do arrojo tanático, do manejo inescrupuloso do terror, da ausência de princípios e da desumanidade.

Agora, o ditador deflagrou uma guerra mundial contra a verdade de fato e contra a imprensa. Na sexta-feira, 4 de março, a Duma (o Parlamento russo), manietada por ele, aprovou uma lei proibindo o uso de palavras como “guerra” ou “invasão” para descrever os ataques russos contra a Ucrânia. Conforme estabelece a nova legislação, a guerra deve ser chamada de “operação militar especial”. Twitter e Facebook foram bloqueados. Os sites da BBC, da Voz da América e da Rádio Free Europe, interditados. O acesso à Deutsche Welle foi limitado. Ameaçadas, agências internacionais suspenderam ou reduziram as atividades no país. A guerra mundial contra a verdade dos fatos faz vítimas no mundo todo.

No lugar dos fatos, entram em cena as mentiras oficiais. Segundo a semântica do Kremlin, a “operação militar especial” foi deflagrada para libertar o povo ucraniano do “neonazismo”, e ninguém pode falar contra. Desde o dia 24 de fevereiro, estima-se que mais de 13 mil pessoas foram presas em protestos contra a guerra. Somente no domingo, dia 6 de março, as autoridades prenderam 4,3 mil manifestantes em Moscou e outras cidades, segundo números da ONG OVD-INFO.

Putin sabe que seu triunfo, cada vez mais incerto, depende de um nível planetário de desinformação industrializada e profunda. Seus apoiadores, velados ou descarados, sabem que estão no mesmo barco: se a verdade factual prevalecer, estão perdidos. Passa por aí a identidade dos estranhos que o admiram e a ele juram “solidariedade”. São “solidários” no repúdio às liberdades e aos direitos, são “solidários” na indústria internacional das fake news. Não é por ignorância que aplaudem o novo senhor da guerra – é por ódio.

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