quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Taxas, números e ainda os velhos mitos

Na semana em que os Estados Unidos batem 700 mil mortes com 43,5 milhões de casos e o Brasil, 600 mil mortes com quase 22 milhões de casos de Covid-19, nos perguntamos como chegamos até aqui. De pouco adianta considerarmos as diferenças de tamanho de população, e portanto a desproporção nos números, ou tampouco quem teve o braço poderoso do SUS como arma salvífica, ou quem morreu em casa porquanto não teve como pagar o serviço privado, como vimos em Nova York. Essas parecem frias questões estatísticas, e ainda que muito graves, se esmaecem frente aos fatos atuais que assistimos, sem surpresa, virem à tona no Brasil, do que chamaríamos más práticas médicas, passíveis de esclarecimento, apuração e punição.

Se a qualidade de nossa presença no mundo está determinada por nosso equilíbrio emocional, psicológico e espiritual, essa vigilância do viver “aqui e agora”, em momento tão inaudito e demarcador de nossas vidas, ela exige igualmente a perda da inocência e a crítica permanente. Em meio ao desmonte desse esquema hospitalar e de uso compulsório de medicamentos que há mais de um ano sabíamos que não funcionavam para prevenção ou tratamento da Covid-19, revimos o documento que um grupo de pesquisadores e médicos escreveram no ano passado, incluindo os resultados finais de estudos bem conduzidos e revisados por pares, sobre a cloroquina e ivermectina. Este documento hoje se incorpora ao dossiê da CPI do Senado, por solicitação da mesma, para subsídio científico.

Nesse clima, lendo a recém publicada biografia do professor Didier Raoult (“Une folie française”, Ed. Gallimard) procuramos entender como o criador obstinado do engodo da cloroquina, em meio à maior crise sanitária dos últimos cem anos no planeta, colocou lenha explosiva numa fogueira já bem ardente. Entendemos perfeitamente como personalidades de muita inteligência e capacidade de articulação e argumentação podem seduzir até dirigentes com um eficiente manipular das vaidades humanas. Nascido em Dakar, no Senegal, filho de médico, exemplo de fruto dos estertores do império colonial francês, sua trajetória recente revela uma vez mais como paixões e crenças tomam o lugar da razão em tempos críticos. Com fotos suas com várias personalidades em seu gabinete, de presidentes da república francesa, e escritores famosos, como Michel Onfray, que esteve a seu lado em diversas aparições públicas, não era tão conhecido fora de suas lides o dr. Raoult, com pesquisas reconhecidas na área das rickettsioses, até que recebe uma dotação milionária do presidente Sarkozy, para seu instituto, e inicia uma profusão de publicações científicas. Bernard-Henri Lévy, o controverso filósofo contemporâneo, que também já adoecera de malária em suas viagens à África, chega a incensá-lo como “um personagem fora do comum, maior que a própria vida”.

Fundador de cinco start-ups, chamado de “druida, gaulês, sábio ou guru”, genial para uns e charlatão para outros, nega qualquer veleidade financeira, mas de fato foi após aportes de grants vultosos, que passou a ter um protagonismo mais condizente com sua personalidade e de modo corretamente premonitório declarou que vírus emergentes seriam a grande ameaça deste século, comparável àquela das grandes pestes da Idade Média e que a transmissão por aerossol seria inevitável. Bingo, mas francamente, muitos de nós sabíamos isso, e o próprio Bill Gates o dissera em entrevista dada em 2015. Com alarde anunciou em fim de fevereiro de 2020, para um auditório lotado e mesmerizado por sua verve, como discípulos de Platão na Academia de Atenas, que “os pragmáticos chineses haviam descoberto que a cloroquina é ativa in vitro” e que essa seria “a mais fácil infecção respiratória a ser tratada”. A partir daí, quando começavam as primeiras mortes pela doença na França, o professor Raoult entra na vida cotidiana dos franceses quase que por efração, um arrombamento.

Resta sempre o alerta, que norteia nosso olhar cauteloso e crítico de médicos, frente a quem insista em reiterar que “as pessoas interpretam o que elas veem e fazem suas ilusões”.

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