terça-feira, 26 de outubro de 2021

Avanço do mar saliniza rio Amazonas e deixa comunidades em estado de emergência

Há algumas semanas, comunidades que ficam à beira do maior rio do mundo estão sem água para beber.

O avanço do mar pela foz do rio Amazonas, por onde escoa um quinto da água doce do planeta, salinizou as águas que banham as comunidades do arquipélago do Bailique, no Amapá.

O fenômeno sempre ocorreu nesta época do ano, mas vem se intensificando nos últimos anos e passou a atingir comunidades que antes não eram impactadas, segundo os moradores.

Como consequência, a prefeitura de Macapá, que responde pelo arquipélago, decretou estado de emergência na última quinta-feira (14/10) e passou a entregar água potável e cestas básicas às comunidades.

Para um pesquisador que estuda o tema, o avanço da salinização pode estar ligado ao aumento global do nível do mar, um resultado das mudanças climáticas.

Ele diz que a região da foz do Amazonas tem passado por grandes transformações nos últimos anos. Um exemplo foi a drástica mudança no curso do caudaloso rio Araguari, um vizinho do Amazonas.

Desde 2013, o rio deixou de desaguar no Atlântico e virou um afluente do Amazonas, alteração que pode ter ampliado a salinização no arquipélago do Bailique e é associada à criação de búfalos e à construção de hidrelétricas.

O arquipélago do Bailique tem cerca de 8 mil habitantes, espalhados por oito ilhas, e fica a cerca de 200 quilômetros da sede de Macapá. Só é possível acessar a região por barco.

As principais atividades econômicas do arquipélago são a pesca, a agricultura familiar e o cultivo de açaí.

Geová Alves, presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique e vice-presidente de uma cooperativa local de produtores de açaí, diz à BBC News Brasil que sempre houve salinização na região entre os meses de setembro e novembro. Nessa época, em que chove menos, as águas do Amazonas costumam baixar, facilitando o avanço da maré.

Com o retorno das chuvas, a partir de novembro, o fenômeno perde força, e a água volta a ficar doce.


Alves diz que, no passado, essa salinização sazonal costumava afetar só cerca de 20 das 51 comunidades do Bailique, aquelas que ficavam ao norte do arquipélago. De alguns anos para cá, porém, todas as comunidades passaram a ser impactadas, segundo ele.

A principal consequência, diz o morador, é a falta de água potável para beber e cozinhar, já que o rio é a principal fonte hídrica das famílias. “São comunidades carentes, que não conseguem comprar água mineral”, afirma. Segundo Alves, um galão de 20 litros de água hoje custa até R$ 25 no arquipélago. As comunidades não têm acesso a água encanada.

Outro efeito da salinização tem sido sentido por pescadores. “Percebemos uma presença grande de peixes de água salgada, e o afastamento de peixes de água doce e camarão”, afirma Alves.

Essa mudança, porém, não tem causado prejuízos aos pescadores, já que peixes de água salgada são valorizados e têm sido capturados em abundância. “Acabou sendo uma vantagem (para os pescadores)”, afirma.

Já no cultivo do açaí ainda não foram notadas mudanças, diz ele, pois os frutos são colhidos no período chuvoso, quando a água já voltou a ser doce.

“Mas ainda não sabemos se o solo vai ter algum prejuízo daqui a alguns anos que possa interferir na qualidade ou quantidade da produção”, afirma.

Ele diz que muitos moradores do arquipélago atribuem a crescente salinização no Amazonas ao assoreamento no vizinho rio Araguari, tema de grande controvérsia na região e uma das maiores transformações na paisagem do Brasil nas últimas décadas.

Com cerca de 500 quilômetros de extensão, o Araguari é o maior rio a correr exclusivamente no Amapá. Ele nasce no Parque Nacional do Tumucumaque e, até 2013, desaguava no Atlântico ao norte do arquipélago do Bailique, a poucos quilômetros da foz do Amazonas, ao sul.

Desde 2011, porém, formou-se – espontaneamente, mas provavelmente em consequência da ação humana – um canal que passou a conectar os dois rios, fazendo com que o Araguari direcionasse parte do seu fluxo para o Amazonas. Esse canal, chamado de Urucurituba, foi engrossando até que, em 2014, passou a absorver praticamente todo o fluxo do Araguari.

Com isso, o Araguari passou a desembocar inteiramente no Amazonas, e não mais no Atlântico. A antiga foz do Araguari secou, tendo sido tomada pela vegetação desde então.

Por causa dessa mudança, o fenômeno da pororoca, pelo qual o Araguari era famoso internacionalmente, deixou de ocorrer. Isso porque a pororoca se forma a partir do choque entre o fluxo do rio e a maré, gerando uma onda que avança continente adentro.

Como não há mais contato entre o rio e o mar, as ondas da pororoca deixaram de ocorrer.

Outra consequência da mudança no curso do Araguari foi a acelerada erosão nas áreas impactadas pelo fluxo do canal Urucurituba. O fenômeno é conhecido localmente como “terras caídas” e já provocou a destruição de centenas de casas no Bailique.

Geová Alves diz que a salinização no arquipélago se tornou mais intensa a partir da mudança no curso do Araguari. Segundo ele, quando desembocava no mar, o Araguari “ajudava o Amazonas a empurrar a água salgada para longe” da costa.

“Com o assoreamento do Araguari, as correntes que se combinavam perderam um pouco da força, e o mar invadiu onde não havia resistência”, ele afirma.

Para Alan Cavalcanti da Cunha, professor de Engenharia Civil da Universidade Federal do Amapá (Unifap), a tese faz sentido.

Pós-doutor em fluxos hidrológicos entre ecossistemas terrestres e aquáticos pela Universidade de Miami (EUA), Cunha estuda o comportamento de rios da região desde 2004.

Em artigo em 2018 para o periódico científico Science of the Total Environment, Cunha e outros pesquisadores analisaram a mudança no curso do Araguari.

Para os autores, o surgimento do canal de Urucurituba – que desviou o fluxo do Araguari para o rio Amazonas – pode estar relacionado a três fatores:

1 – Dinâmicas naturais no estuário do Amazonas, que incluem o deslocamento de grande quantidade de sedimentos e o forte fluxo das águas tanto em direção ao oceano quanto no sentido contrário, alterando o curso do rios;

2 – A implantação de usinas hidrelétricas no alto curso do Araguari.

A primeira usina passou a operar em 1976, e as outras duas, em 2014 e 2017. Segundo os autores, as usinas alteraram a dinâmica do transporte de sedimentos pelo rio, o que pode ter favorecido a abertura do canal de Urucurituba;

3 – A criação de búfalos nas margens do rio.

Introduzidos na região no século 19, esses pesados animais criam valas ao pisotear frequentemente os mesmos locais. Uma dessas valas pode ter dado origem ao canal Urucurituba – que, com a força das águas, foi se expandindo até alcançar o Amazonas.

Estima-se que haja 202 mil búfalos na bacia do Araguari, número três vezes maior que a população humana local.

Em entrevista à BBC News Brasil, Cunha diz que, quando o Araguari deixou de desaguar no mar, o Amazonas perdeu um aliado que o ajudava a manter a água salgada longe da costa.

Ele aponta ainda outras duas causas para os relatos de crescente salinização no Bailique, ambas associadas às mudanças climáticas.

A primeira é o aumento global no nível do mar, provocado pelo degelo das calotas polares. Segundo a Nasa (agência espacial americana), o nível médio do mar subiu cerca de 20 centímetros entre 1901 e 2018.

Cunha explica que, em todos os estuários (pontos onde o rio se encontra com o mar), há um jogo de forças entre o fluxo dos rios e as marés. Quando a maré sobe e o fluxo do rio diminui, a água salgada consegue avançar mais facilmente rio adentro, movimento que se inverte quando a maré baixa e o fluxo do rio aumenta.

Por isso, diz Cunha, o aumento do nível dos oceanos tende a alterar esse equilíbrio em favor do mar, fazendo com que a água salgada avance mais facilmente pelos rios.

É o que já pode estar ocorrendo na foz do Amazonas, segundo o pesquisador.

Outra possível explicação para o aumento da salinização no arquipélago do Bailique, segundo ele, é a elevação das temperaturas na região, outro efeito das mudanças climáticas.

O calor mais forte amplia a evaporação, o que por sua vez acelera a circulação de ar e permite que ventos transportem mais sal que estava nos oceanos para o continente.

Cunha afirma que as mudanças em curso na foz do Amazonas precisam ser mais estudadas, especialmente os impactos do avanço no nível do mar. Segundo ele, a região é extremamente sensível a alterações – e como seus rios e lagos estão conectados, uma mudança num ponto qualquer pode provocar consequências a vários quilômetros dali.

Até o fim deste século, prevê-se que o nível médio dos oceanos possa subir entre 0,6 m e 1,1 m em relação aos padrões pré-industriais a depender do ritmo das emissões de gases causadores do efeito estufa.

As transformações no arquipélago do Bailique jogam luz sobre uma das possíveis consequências das mudanças climáticas para populações costeiras. Sabe-se que a elevação do nível do mar tende a inundar muitas regiões litorâneas, forçando suas populações a migrar.

Para muitas comunidades em estuários, porém, escapar das inundações talvez não seja suficiente, pois pode faltar água doce para abastecê-las.

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