terça-feira, 6 de julho de 2021

A hipótese militar

Uma hipótese para que Bolsonaro, diante da denúncia dos irmãos Miranda, nada tenha feito: que a tradicional corrupção no Ministério da Saúde, operada por esses barros e seus afilhados, tenha sido encorpada pela adesão competitiva de militares ao esquema. Não seria só o Centrão a amarrá-lo.

O governo é militar. Sim: abrigou mobília testada como Roberto Dias, que Bolsonaro chegaria a indicar a cargo de direção na Anvisa; só recuando ante a notícia de que assinara contrato suspeito para compra de 10 milhões de kits-teste. Recuou da indicação, sem se acanhar, porém, para mantê-lo como diretor do Departamento de Logística do ministério em que, ora, ora, firmara o convênio acusado.


Manteve Dias, cheio de padrinhos e alcolumbres. Mas, sendo o governo militar, acrescentar-se-iam à dinâmica tipos como coronel Blanco, aquele que, ex-assessor de Dias até janeiro, abriu uma empresa de representação comercial de medicamentos três dias antes de se sentar à mesa, em 25 de fevereiro, com o ex-chefe e o policial Dominguetti, intermediário do intermediário, para presenciar conversa em que um diretor do Ministério da Saúde teria pedido propina ao atravessador que oferecia inacreditáveis 400 milhões de doses do imunizante AstraZeneca por meio de uma companhia, a Davati, de que procuração não tinha.

Assim se manifestou o CEO da Davati, Herman Cárdenas, sobre o que ofertava: “No começo deste ano, fomos procurados pelo nosso representante no Brasil para ajudar a localizar vacinas contra Covid-19. Descobrimos um possível lote de vacinas sendo oferecido por um vendedor privado no exterior”. Diga-se que a ponte entre a descobridora Davati e o governo, antes de Dominguetti entrar na jogada, coubera a outro militar, o coronel Criscuoli, amigo de Bolsonaro e próximo a Eduardo Pazuello e Elcio Franco.

Cárdenas também falou sobre Dominguetti, o desconhecido que, no entanto, operava por sua empresa e que incluíra em e-mail ao ministério: “Nos disseram para incluí-lo, mas ele não estava nos representando. A Davati não tinha conhecimento de quem ele era, então presumimos que era representante deles”.

Deles quem?

Nada disso — essa várzea — impediria que Dominguetti fosse recebido, no dia seguinte, no Ministério da Saúde; nem que, adiante, chegasse ao gabinete do secretário executivo, coronel Elcio Franco.

Para isto serve o rolo Dominguetti/Davati: para mostrar como era fácil alcançar o centro decisório do ministério bastando ter/ser um intermediário, independentemente de haver vacinas a comerciar. Este, o atravessador, o elemento que dispararia o interesse do governo Bolsonaro — não por imunizantes necessariamente, mas por contratos. Era o negócio — a fatura, uma carta de intenções — que fazia a máquina girar. E tudo bem que fosse irreal a oferta, se real fosse a intermediação. Eram necessárias a Precisa, a Belcher, a Davati, até um Dominguetti. O agente que faltara à Pfizer.

Voltamos, pois, ao caso Covaxin. O caso-mãe.

Eis a cronologia, segundo a última versão do Planalto. Em 20 de março, os Mirandas falaram a Bolsonaro sobre traficâncias no Ministério da Saúde relativamente à aquisição dessa vacina. Terceirizando a prevaricação, o presidente mandou Pazuello investigar. Era dia 22. (Não há documento que formalize a ordem.) O general matou no peito. O chefe determinara mesmo que apurasse; que, claro, o ministro da Saúde investigasse seu Ministério da Saúde. Pazuello, por sua vez, terceirizando a terceirização, repassara a demanda a seu braço direito, conforme explicaria, em 29 de junho, à PGR:

— Impende destacar que o secretário executivo Elcio Franco foi responsável pela negociação, contratação e aquisição de todas as vacinas pelo Ministério da Saúde. Por consectário lógico, o agente público com maior expertise para apreciar eventual não conformidade contratual quanto às vacinas era o secretário executivo.

Note-se que o “consectário lógico” de Pazuello é a própria razão para que não fosse Elcio a investigar “eventual não conformidade contratual”. Ou não será uma anomalia — a defesa do vício — estabelecer que o “responsável pela negociação, contratação e aquisição de todas as vacinas” seja o designado a apurar o produto (degenerado, segundo a denúncia) de sua expertise?

Pazuello recebera a ordem — repita-se — em 22 de março. (O mesmo 22 de março em que Regina Célia Silva Oliveira, fiscal do contrato em xeque, autorizaria a abertura do processo de importação da Covaxin, mesmo ante pedido por pagamento antecipado — não previsto — a ser feito a offshore não constante no tratado.) Pazuello seria exonerado no dia seguinte, 23, quando se formalizou demissão anunciada ainda no dia 15. Foi a 24 de março, aliás, já fora da pasta, que associaria a sua queda à falta de “pixulé”; à “crise com liderança política que nós temos hoje, que mandou uma relação pra gente atender e nós não atendemos, e aí você está jurado de morte”. (O mesmo dia 24 em que a Anvisa reclamava, ao ministério, de ser diretamente assediada por e-mails da intermediária Precisa pressionando pelo aval à importação da Covaxin.) A 26 de março, seria Elcio Franco o exonerado, mas não sem que informasse — após três dias de averiguação — estar tudo bem com o contrato; o mesmo suspenso ao fim de junho.

Estará tudo bem até ficar tudo ruim. A crise é também militar. O risco de quando se manda Elcio Franco investigar elcios-francos. Já não dá para culpar apenas “a liderança política que temos hoje” nem cantar somente “se gritar pega Centrão...”.

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