quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O humor das ruas

Não sobrou ninguém em pé. O Brasil da Lava-Jato emergiu nos blocos e nas escolas de samba numa bem-humorada devassa política. O compositor João Roberto Kelly expôs a fadiga com o Judiciário e seu augusto tribunal em marcha nacional: “Alô, alô, Gilmar/ Eu tô em cana, vem me soltar/ Eu roubei, eu roubei, eu roubei/ Não estou preso à toa/ Mas no mundo, não há quem escape/ De uma conversinha boa.”

No Rio, o bloco Imprensa Que Eu Gamo algemou com romantismo: “Quando a gente se encontrar/ Nem Gilmar vai nos soltar.”
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A mineira Orquestra Royal evoluiu na mordacidade das planilhas com nomes e codinomes: “Relaxa o Garotinho/ E solta o Bicudo/ Abraça o Mineirinho/ Com Supremo com tudo/ Cuida da Rosinha/ Adula o Angorá/ Libera o Barata/ E faz acordo com Jucá.”

A banda avançou na temporada eleitoral com “Bolsomico”, a desmemória da ditadura: “É melhor Jair/ Já ir embora/ Sair correndo/ Para a aula de História.”

Em Campinas (SP), os Marcheiros vislumbraram uma feição peculiar no horizonte da corrida presidencial: “Na aristocracia/ Desponta um nariz descomunal/ Com vontade de se enfiar/ No pleito eleitoral.”

Boca Nervosa emoldurava o sorriso na tela do YouTube, enquanto desconstruía outra candidatura (embargada em juízo) em “O homem mais honesto do Brasil”: “Com tanta honestidade/ É a nossa Santidade/ No Vaticano tá rolando um zum-zum-zum/ Ele foi canonizado e será pontificado/ O Papa Luiz 51/ Ei, ei, ei, que beleza/ Ele é mais santo que a Madre Teresa/ Acredite quem quiser/ É mais honesto que Chico Xavier.”

Prefeitos e governadores ascenderam a um grupo especial. Em São Paulo, por exemplo, ouvia-se: “É buraco na rua/ É o mato crescendo/ É um Deus nos acuda/ Quando está chovendo/ O farol não funciona/ A enchente aparece/ Liga 156, e nada acontece/ Enquanto isso, o prefeito gariiii…/ Fala de São Miguel/ E sonha com o (palácio do) Morumbi/ É isso aí!”

Em Belo Horizonte, João Batera e Dimas Lamounier retrataram a desilusão na periferia com gerações de governantes: “Há tempos tô esperando, esperando o metrô/ Eu era criancinha e hoje sou avô/ Tem mais de 30 anos e ainda não chegou/ Cadê a verba, desapareceu/ Será que tá em Brasília, ou o gato comeu.”

A 500 quilômetros, na Costa Atlântica, o Simpatia é Quase Amor insuflava Ipanema: “Ensaio de escola? Ele mela!/ Roda de samba? Atropela!/ Macumba? Não tolera!/ Só gosta de bloco Nutella!/ Ele não cuida? Nem zela!/ Casa de jongo? Cancela!/ Em nome de Deus? Apela!/ Qual o nome do hômi?/ É (…)

Pelos botequins, Luís Filipe Lima e Alfredo Del-Penho puxavam o coro: “Eu trabalho o ano inteiro/ E ainda acendo uma vela/ Só pra poder pagar/ O IPTU pro Crivella.”

À volta, o Barbas ironizava um incerto projeto de poder no “interesse de Deus”: “Ira e soberba, que preguiça de você/ Quanta avareza, solta a verba, quero ver/ Alô, seu prefeito/ Expulsa a gula de poder/ Olha… nosso corpo é luxúria/ Se inveja, se mistura/ E deixa o povo te benzer.”

Nas calçadas, Thiago de Souza e Daniel Battistonni arrematavam: “Marcelinho/ Não fique assim/ Quarta de Cinzas a folia/ Chega ao fim/ Marcelinho/ Não fique p***/ Que até a Páscoa/ Eles voltam para o culto!”

De São Cristóvão à Sapucaí, milhares do Tuiuti suplicavam pelo fim da servidão, decretada há 130 anos: “Meu Deus/ Meu Deus/ Se eu chorar não leve a mal/ Pela luz do candeeiro/ Liberte o cativeiro social”. Dominante, a crítica política aberta, mordaz, atrevida e até herética sugere que no Brasil da Lava-Jato floresce o desencanto, mas se renova a aposta num futuro diferente daquilo que o futuro costuma ser na Quarta-Feira de Cinzas.

José Casado

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