domingo, 26 de novembro de 2017

'Classe C não usa Facebook para mobilização política'

O antropólogo Juliano Spyer mergulhou no cotidiano de um povoado no norte da Bahia por 15 meses. Instalou-se, criou laços, adicionou e foi adicionado em centenas de contatos no Facebook e em seus grupos de WhatsApp. Passou a compartilhar os dramas sociais, enredos amorosos e memes da paisagem real e virtual, tanto pública quanto privada, da comunidade de cerca de 15.000 habitantes cujo nome ele preferiu preservar.

Abril | 2016 | Horizontes Afins
O resultado da incursão, seu doutorado na University College London (UCL), no Reino Unido, se transformou no recém-lançado Social Media in Emergent Brazil, um dos estudos qualitativos mais completos disponíveis (o download é livre e uma versão em português deve sair em 2018) de como as classes populares no Brasil usam e incorporam a Internet e as redes sociais. A obra faz parte de uma série da universidade britânica que compara o panorama em nove países. Na entrevista abaixo, Spyer aponta um abismo que separa o tipo de uso político das redes nas classes mais abastadas e nos estratos mais pobres do país e fala do impacto dos evangélicos nessas comunidades. O grupo impressionou tanto o autor que ele já prepara novo livro sobre o tema que, por ora, leva o título Crentes, uma revolução popular brasileira.

Seu livro conta que não é comum na comunidade que você estudou postar opiniões políticas, mas mostra, por exemplo, o caso de uma evangélica que publicou as fotos de seu casamento no Facebook para marcar a vitória ante o pastor local que se negou a casá-la porque ela já morava com o namorado. As redes são armas políticas para as classes populares, mas não como a gente pensa?
Exato. A rede pode ser e é usada no jogo local de poderes, como ferramenta para mostrar conquistas ou atacar rivais, mas não para discutir visões sobre a política como fazem os setores mais escolarizados. A classe C não usa o Facebook para mobilização política. Para os meus vizinhos no povoado a política é palpável. Eles querem saber se o posto de saúde vai ficar aberto 24 horas, se a rua será asfaltada, se a escola que fechou porque o Governo suspendeu o pagamento dos funcionários terceirizados da limpeza vai reabrir. Mães estão sendo incorporadas ao mundo do trabalho formal, o que confere grandes vantagens para a família em termos de benefícios e estabilidade, mas traz novas dores de cabeça. Essas mães não estarão na vizinhança para ficar do olho nos filhos e por isso elas querem saber quando o Governo oferecerá atividades que deem alternativa para que a filha ou o filho não fiquem pela rua desacompanhados – por exemplo, atividades físicas ou aulas de línguas. Eles não precisam da Internet para saber desses problemas porque são dificuldades diárias da vida no brasileiro das camadas populares. E eles também não precisam das mídias sociais para se articularem, porque essa articulação já existe nas redes tradicionais de ajuda mútua, que se baseiam na proximidade física entre as pessoas.

Nossa sociedade é tão segregada que o contato que temos com grupos populares geralmente se resume às conversas com a empregada e a situações de assalto

Nem durante a campanha esse tipo de post político aparece?

Os moradores não discutem política por entenderem que os políticos os veem como cidadãos de segunda categoria. O candidato aparece nas campanhas prometendo mundos e, depois que é eleito, desaparece. Veja um caso relativamente comum de um tema político que motivou protesto no povoado: um grupo de moradores se organizou para fretar ônibus e fazer manifestação na frente da prefeitura contra a presença de caminhões de carga transitando irregularmente no povoado. A passagem desses caminhões quebra o asfalto, levanta poeira e provoca problemas respiratórios. Desde que eu saí de lá, há três anos, a situação piorou porque os caminhões agora passam de madrugada, poluindo o ar e também, por causa do barulho intenso, atrapalhando o sono das pessoas que acordam de madrugada para trabalhar.

Você estava em campo em junho de 2013 e na campanha de 2014. Como os grandes protestos foram acompanhados de lá?


 Eu acompanhei os grandes protestos de junho de 2013 simultaneamente de dois pontos de vista. Enquanto os meus amigos intelectuais de classe média de São Paulo dedicavam muitas horas discutindo política e repassando informação sobre as mobilizações, no povoado esse tema chegou apenas via TV, e ela praticamente não gerou conversas cara a cara nas ruas nem pela Internet. Meus vizinhos do povoado assistiram às notícias dos protestos que aconteciam a 100 quilômetros dali, em Salvador, da mesma forma como assistiram os protestos da Primavera Árabe ou do Occupy Wall Street nos Estados Unidos. Como eu expliquei anteriormente, política governamental é um tema que frequentemente os lembra de sua condição de cidadãos de segunda categoria, porque, segundo eles explicam, políticos aparecem nas campanhas depois somem. Há pessoas que se manifestam online e offline, nesses períodos de campanha, a favor de um ou outro candidato, mas pelo que eu vi esse tipo de apoio muitas vezes tem a ver com vínculos dessas pessoas com grupos políticos específicos. Quem apoia e faz campanha pelo candidato – vereador, deputado estadual, prefeito – geralmente espera recompensa, principalmente sendo contratado para um cargo no serviço público. O que circulou muito em 2014, principalmente via WhatsApp, foi conteúdo ridicularizando políticos e concordando com essa ideia pessimista sobre o político ser essencialmente um interesseiro. Essa raiva contra a classe política lembra o clima aqui do Reino Unido, que levou à vitória do Brexit, e nos Estados Unidos, que elegeu Trump, e que se manifesta hoje, nas camadas populares brasileiras, pelo apoio a Bolsonaro. Em outras ocasiões essa revolta apareceu no voto pelo Tiririca (“pior que tá não fica”), mas a crise econômica desses últimos anos e o consequente o empobrecimento desses setores parece que azedaram o humor desse grupo, que quer ver os outros grupos da sociedade saírem de sua zona de conforto.

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