quarta-feira, 29 de novembro de 2017

A Globo, do outro lado do paraíso

Nenhuma rede de comunicação foi – e ainda é – tão influente na história recente do Brasil como a Globo. Na época da ditadura civil-militar, o grupo Globo se consolidou como o maior do país e um dos maiores do mundo. A redemocratização chegou, e as Organizações Globo seguiram fortes. Nos protestos de junho de 2013, a cobertura da TV Globo e da Globo News foram decisivas para consolidar a narrativa de que os manifestantes eram “vândalos”. A Globo influenciou a opinião nacional na forma como cobriu a Lava Jato, os movimentos pelo impeachment de Dilma Rousseff e contra o PT, assim como na divulgação dos grampos ilegais da conversa gravada entre Lula e a então presidente do país. E, finalmente, foi em O Globo, principal jornal do grupo, que foi denunciada uma conversa altamente comprometedora entre o presidente Michel Temer (PMDB) e Joesley Batista, dono da JBS, à noite, no palácio residencial e fora da agenda, e que culminou com um editorial defendendo a renúncia de Temer – mas não eleições diretas. Como todos sabem, Temer não caiu até hoje.

Há algo novo no horizonte da Globo neste momento. Para parte daqueles identificados com a esquerda, a Globo é “golpista”. Essa parcela aponta a rede, em especial a TV Globo e a Globo News, como protagonista do “golpe parlamentar” que tirou Dilma Rousseff, uma presidente ruim, mas legitimamente eleita, do poder. Essa narrativa é alimentada não só pelos fatos atuais, mas pelo passado da emissora: em especial a edição do último debate entre Fernando Collor de Melloe Luiz Inácio Lula da Silva, nas eleições de 1989. Era o primeiro pleito presidencial após o fim de uma ditadura que durou 21 anos, detonada por um golpe civil-militar que a Globo apoiou, fato pelo qual pediu desculpas em 2013. A desconfiança contra a Globo, disseminada em uma parcela considerável dos que pertencem ao campo progressista, é permanente. E vem se acirrando desde 2013, amplificada pela facilidade de difusão das redes sociais. Essa ligação com o “golpismo”, mais incisiva neste momento, está intimamente ligada ao passado da Globo, mas também a algumas escolhas do presente.

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A novidade, porém, está em outro campo, na parcela da sociedade que chama a Globo de “comunista”. Essa é a parte surpreendente mesmo para aqueles que sempre consideraram a Globo responsável por todos os problemas do Brasil. De comunista, virou também “pró-Lula” e “pró-PT” e até mesmo “pró-Cuba”. Até bem pouco tempo atrás seria difícil alguém acreditar que viveria para ver a Globo ser chamada de “comunista”. Mas, no atual momento do país, o impossível é um conceito desidratado pelo sem limites da realidade política.

A esse clamor tem se juntado parte do fundamentalismo evangélico, concentrado numa parcela das igrejas pentecostais e neopentecostais, que tem dado novos sentidos ao que chamam de comunismo. Desde que essa parcela do evangelismo começou a crescer no país, a se articular como força política no Congresso e a ter na TV um de seus principais meios de proselitismo religioso (e também político), as escaramuças com a Globo, por um lado, e as tentativas de aproximação da rede com lideranças evangélicas, por outro, têm sido uma constante especialmente desde 2010. É fundamental lembrar que a principal concorrente da Globo é, já há algum tempo, a Record, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), do Bispo Edir Macedo.

Como tudo, no Brasil atual, nada é simples. Muito menos previsível. Na tarde do sábado, a hashtag #GloboLixo viralizou nas redes. Durante uma transmissão ao vivo, em que o repórter informava sobre o estado de saúde de Michel Temer, que passava por uma angioplastia no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, um homem parou bem atrás do repórter e começou a gritar: “Globo Lixo!”. A transmissão teve de ser interrompida, e as redes sociais foram tomadas por todo o tipo de comentário com #GloboLixo.

O curioso no episódio é que a hashtag foi usada por pessoas que em todo o resto discordam de forma visceral. Embora a maioria claramente pareça pertencer ao campo conservador, havia muitos ligados ao campo progressista. A Globo era “#GloboLixo” por motivos muito diversos e até mesmo opostos, unindo campos que têm se mostrado inconciliáveis no cotidiano do país. Hoje, a Globo (assim como outros veículos de comunicação) tem sido chamada de “lixo” também por grupos que até bem pouco tempo atrás eram tratados por ela como a face nova e arejada da democracia numa “cruzada contra a corrupção” ou como os jovens rostos do liberalismo, o que não deixa de ser uma ironia.

Isso não significa que a Globo atingiu uma unanimidade negativa, mas que este momento do Brasil se torna mais e mais complexo. E a forma como é vista a maior rede de comunicação do país por diferentes grupos é crucial para tentar compreender o atual fundo do poço sem fundo.

A pecha de “comunista”, relacionada à Globo, é a mais desafiadora, porque tão delirante quanto calculada. Até o Santander, um dos maiores bancos privados do mundo, foi chamado de “comunista” durante o ataque à exposição QueerMuseu, em Porto Alegre, no qual a direção do centro cultural capitulou diante dos manifestantes. Chamar tanto o Santander quanto a Globo de “comunistas” pode ser compreendido como uma falha cognitiva desses acusadores. Mas este é um caminho fácil demais.

Uma pista importante é a ligação entre comunismo e temas morais neste momento em que grupos estridentes, mas não necessariamente representativos do pensamento da maioria dos brasileiros, como pesquisas já mostraram, têm produzido ataques contra a arte, artistas e museus, assim como episódios como a queima como “bruxa” de uma boneca com a cara da pensadora americana Judith Butler.

Comunismo, hoje, no Brasil, para alguns grupos, está muito mais associado aos costumes. A tudo que, para estes grupos, representa “aquilo que não presta”, categoria em que costumam colocar no mesmo patamar a reivindicação de um direito civil, como o casamento gay, e um crime, como a pedofilia. Neste mesmo sentido, algumas lideranças no campo da política, movidas pelo oportunismo, popularizaram a frase “querem transformar o Brasil numa Cuba”, como se essa fosse uma ideia real em circulação. Sem contar que a Cuba de Fidel Castro promoveu a perseguição e o encarceramento de gays e de lésbicas, uma face que a tornou mais parecida com aqueles que repetem essa frase sem noção.

O mais interessante desse processo é que a famosa ameaça do passado, que se tornou um tanto anedótica, a do “comunista comedor de criancinhas”, ganha uma literalidade de acepção sexual com o recente fenômeno nacional de enxergar pedófilos em quadros, performances e museus e acusar os autores das obras e os responsáveis pelas exposições como propagadores não só da pedofilia, mas também do comunismo. Nessas decodificações recentes que despontaram na sociedade brasileira, ser comunista seria, em resumo: “Corromper nossas crianças, acabar com a família brasileira, estimular a pedofilia e fazer todo mundo virar gay”.

Essas ligações não são novas, basta lembrar das marchas Da Família, com Deus e pela Liberdade, marcadamente católicas, que precederam a ditadura civil-militar, em 1964, contrapondo-se à suposta “ameaça comunista”. Mas, no Brasil atual – e na era da internet – isso aparece com nova roupagem e com novos atores e com muito mais virulência, o que torna tudo mais complicado.

Assim, não é apenas uma falha cognitiva ou uma deficiência educacional ou ainda uma ignorância, já que nada mais distante do comunismo do que a Globo ou o Santander. (E sem esquecer que tampouco o comunismo é um conceito teórico fechado ou acabado nem suas experiências reais foram menos do que controversas.) Mas, neste caso, trata-se também de uma nova construção de sentidos, com pouca ou nenhuma conexão com o conceito original de comunismo. Em vez de ser ridicularizada, essa apropriação deve ser escutada, estudada e compreendida. Inclusive porque cresce e porque tem influenciado o cotidiano do país.

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