domingo, 3 de julho de 2016

Dois pra lá, dois pra cá

Certos intérpretes da História brasileira entendem que nossa democracia é “jovem”. Remonta, quando muito, ao fim dos governos militares, nos anos 1980. Os petistas tendem a vê-la como fruto da própria fundação do partido, no final dos anos 70. Seja como for, a invocação de nossa “juventude” democrática sempre aparece como justificativa das mazelas políticas do País.

Outros intérpretes preferem enfatizar os avanços ocorridos em nossa vida democrática desde o retorno ao regime civil. Estes entendem que já temos no País uma democracia em avançado estágio de consolidação, graças a um sem-número de aprimoramentos.

Da primeira tese podemos inferir sem temor a erro que a formação do nosso regime democrático pode ser compreendida sem recurso à História. O que aconteceu antes dos anos 80 não importa. A ideia de que a democracia resulta de um demorado processo de construção institucional não passa de especulação. No tocante ao sufrágio, por exemplo, instituímos o voto feminino em 1933, antes de vários países europeus; na primeira metade dos anos 80, 60% da população já estava habilitada a votar. Mas tais precedentes seriam insignificantes. Voltar à Independência e ao Império, então, nem falar. Ou seja, a democracia teria surgido da noite para o dia, prontinha. Das trevas medievais teríamos passado direto às luzes democráticas que hoje bem ou mal possuímos.

Os que veem nossas instituições já na reta de chegada, em franco processo de consolidação, têm argumentos mais interessantes. Destacam, com toda a razão, que o regime como tal não sofreu rupturas, nem sequer ameaças sérias, desde seu restabelecimento em 1985. As eleições foram realizadas segundo as regras e os prazos previstos. Finda a guerra fria e a radicalização ideológica do pré-1964, neutralizada a propensão intervencionista então existente entre os militares e controlada a inflação – sem esquecer outras reformas relevantes, como a do sistema financeiro, efetivada nos anos 90 –, o tradicional pessimismo sobre as instituições ter-se-ia tornado simplesmente descabido. Quer dizer, se a primeira tese peca por falta, a segunda peca por um enorme excesso.


A esta altura da discussão, não podemos prescindir de um ligeiro excurso conceitual. A que conceito de democracia nos estamos referindo? Segundo um entendimento muito difundido, democrático é o país onde só acontecem coisas boas. Pobreza não existe e a desigualdade é apenas residual. A riqueza nacional é suficiente para assegurar o bem-estar e a felicidade de todos os cidadãos. Numa sociedade tão pouco conflituosa, os processos políticos, quase desnecessários, são tocados por indivíduos probos, altruístas e de alto discernimento. Claro, assim concebida, a democracia é apenas um sonho. Não aparece em nenhum mapa. Pode ser uma bela imagem no plano onírico, mas nada tem que ver com a reflexão proposta neste artigo.

A noção de democracia hoje quase universalmente aceita é a de um regime político historicamente existente. Como tal, podemos decompô-la em dois elementos. Trata-se, por um lado, de um sistema político em que as autoridades públicas são escolhidas mediante eleições limpas e livres, nas quais a maior parte da população adulta esteja apta a participar. Segundo, uma vez investidas em suas posições governativas, as referidas autoridades exercem suas funções sob restrições e pressões incessantes, ou seja, sujeitas a um processo de contínua fiscalização e, no limite, à possibilidade de serem afastadas.

Quanto ao primeiro requisito – como passageiramente já indiquei –, creio haver no Brasil um consenso bastante razoável. Em si mesmo, o ato de votar não é objeto de maiores restrições, mas a engrenagem da representação política – especialmente o sistema eleitoral e a organização partidária - tem sido questionada, e não sem razão. Por exemplo: os 20 e tantos partidos atualmente representados na Câmara dos Deputados evidenciam a saudável presença do leque de legítimos interesses e opiniões existentes na sociedade, ou, ao contrário, uma farsa monumental, uma pseudorrepresentação de tais interesses e opiniões?

Mas nem precisamos ir tão longe. Em nosso sistema, as autoridades realmente governam sob uma contínua e eficaz fiscalização? As restrições aqui consideradas são, desde logo, as insculpidas na Constituição e nas leis, cuja titularidade cabe em primeiro lugar ao Judiciário e à Procuradoria-Geral da República. Em que pese a atuação altiva e enérgica do juiz Sergio Moro, não há dúvida de que o Brasil é ainda regido por duas Justiças, uma para os poderosos e outra para os batedores de carteira. A diferença entre ambas é que a segunda funciona. Essa realidade é de tempos em tempos reconhecida até por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). E esse ponto, de permanente importância, precisa ser complementado por outro de natureza conjuntural. Oito dos 11 ministros ora em atividade no STF foram nomeados por Lula e Dilma Rousseff. Só os muito crédulos atribuem pouca importância a esse fato.

O enunciado “governar sob restrições incessantes e eficazes” traz evidentemente à baila a questão da transparência e de seu correlato, a accountability, ou seja, a possibilidade de responsabilizar autoridades que eventualmente atuem em desacordo com suas atribuições. Mas o BNDES, por exemplo, só agora, sob a presidência da doutora Maria Silvia Bastos, está cumprindo sua inequívoca obrigação de facultar o acesso da Justiça aos registros de suas operações. Como é público e notório, tais informações foram sonegadas durante um longo período. Trata-se de uma singularidade, um caso isolado, ou de uma síndrome totalmente antagônica ao que se deve esperar numa democracia, ainda mais considerando o volume de recursos movimentado pelo banco e a catadupa de subsídios por ele concedidos a empreendimentos privados?

Bolívar Lamounier

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