sexta-feira, 24 de abril de 2015

Uma fábula da modernidade


Os governantes inauguram bibliotecas, os empreiteiros e a privataria tomam conta. A patuleia que paga, dança

O grande poeta Cacaso (1944-1987) fez um versinho que pareceu datado e revelou-se eterno:
“Ficou moderno o Brasil,
ficou moderno o milagre.
Água já não vira vinho.
vira direto vinagre.”

A modernidade do século XXI tem os velhos toques de arquitetura futurista, mais privataria e terceirizações. Somando-se a isso, cria-se uma boa página da internet e, tchan, o futuro chegou.

Quem passa pela Avenida Presidente Vargas, no Rio, vê um lindo prédio prédio branco. É a Biblioteca Parque, do governo do estado. Foi uma joia da coroa da campanha do candidato Pezão, que prometeu construir mais 11. Inaugurada em 2013, foi entregue à empresa Instituto de Desenvolvimento e Gestão, o IDC. Funcionava ali outra biblioteca pública, resultado de uma iniciativa de Dom Pedro II. Às vezes ia bem, depois ia mal. Darcy Ribeiro remodelou-a, mas no governo Sérgio Cabral decidiu-se passar o Rio a limpo. O velho prédio foi demolido. No lugar, ergueu-se o outro, moderno e lindo (com isso os empreiteiros e fornecedores de serviços faturaram pelo menos R$ 71 milhões). Com o milagre, a água viraria vinho.

Virou vinagre. Um ano depois de sua festiva inauguração, o IDC resolveu reduzir o horário de atendimento. A instituição funcionava das 10h às 20h. Funcionará das 12h às 18h30m, de terça a sexta, e não abrirá mais nos fins de semana. A empresa tem seus motivos, pois Pezão lhe deve R$ 10 milhões. Vale notar que o novo horário exclui todos aqueles que trabalham na região e que o IDC acha problemático abri-la no fim de semana. São muitas as grandes cidades brasileiras que não têm bibliotecas abertas aos domingos, mas se o Rio quiser mudar de patamar, não fecha a sua.

Construir ou reformar bibliotecas rende imediatos faturamentos e cerimônias. Mantê-las é outra história, coisa que depende de recursos e servidores dedicados. Pezão tropeçou nessa ponta dessa equação. Em outros casos, piores, caiu-se na primeira, na qual paga-se parte da obra e deixa-se a instituição à matroca. A Biblioteca Nacional de Brasília, construída em 2002, tornou-se um excelente salão de leitura e centro de exposições, mas biblioteca nacional não é. A Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul está fechada para reformas há oito anos. A Câmara Cascudo, de Natal, e a Pública de Maceió estão em reformas, fechadas há quatro anos. A Biblioteca Municipal de Manaus, fechada há três anos, foi ocupada por moradores de rua e depredada em setembro do ano passado. Isso para não se falar do Museu do Ipiranga, fechado desde 2013, com reabertura prevista para 2022. De tempos em tempos, a cripta onde deixaram Dom Pedro I vira mictório.

Muito mais importante do que construir novos prédios e contratar administradores privados é cuidar direito do que já existe, com os servidores que lá estão. Uma das Bibliotecas Parque do governo do Rio, logo a da Rocinha, foi apanhada num lance de superfaturamento.

Numa trapaça da vida, a única biblioteca criada nos últimos meses funcionou, inclusive aos domingos, na carceragem de Curitiba, onde os empreiteiros presos pela Lava-Jato compartilharam sua leituras de bordo.

Elio Gaspari

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