segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Potemkin às avessas

Realidade tem se revelado tão distante da promessa quanto as estatísticas de casos de zika e síndrome de Guillain-Barré

Os marqueteiros encarregados de dar visibilidade ao mutirão de combate ao zika conseguiram inovar no gênero entretenimento: criaram uma ficção ruim para uma realidade que estava boa. Talvez nem Serguei Eisenstein, o revolucionário mestre do cinema mudo que criou uma obra-prima de ficção a partir de um fato histórico, ousasse tanto.

Eisenstein baseou-se na rebelião de marujos ocorrida a bordo do “Potemkin” na Rússia czarista de 1905 para fazer uma obra universal sobre poder coletivo. E até hoje seu filme de 1925 é debatido pelo arrojo de efeitos especiais, experimentações e montagem.

Já o mutirão zika, segundo revelou a “Folha de S.Paulo” desta sexta feira, submeteu um pacato cidadão brasileiro, além do presidente do Banco Central, e como coadjuvante o país inteiro, a uma encenação que alguns podem qualificar de apenas ridícula. Ou patética.

Mas ela é grave pelo que traz embutido.

Sábado, 13 de fevereiro, foi o dia em que a presidente Dilma Rousseff, 28 ministros, prefeitos e governadores, com suas respetivas comitivas, além dos 220 mil homens e mulheres das Forças Armadas, se espalharam país afora para deslanchar a Mobilização de Combate ao Aedes Aegypti nas capitais e grandes centros urbanos. Camiseta #ZikaZero no peito, folheto explicativo em mãos de assessores, os ocupantes do poder através do sacrifício coletivo de saírem às ruas contagiariam as massas na necessária mobilização popular de combate ao mosquito. Agenda positiva com farta cobertura da mídia nacional e internacional.

A “Folha” entrevistou Elder Fernandes, borracheiro de Brazlândia, cidade a 50 km de Brasília, que no dia da mobilização estava no roteiro do núcleo composto por Alexandre Tombini, presidente do Banco Central, Renato Santana, vice-governador do DF, mais alguns secretários e deputados.

Dez minutos antes da passagem da comitiva, o borracheiro recebera a visita de pessoas que lhe perguntaram se tinha pneus para descartar. Respondera que sim, e mandaram que os colocasse do lado de fora para serem recolhidos. Por isso, havia perto de 20 pneus empilhados na rua quando as autoridades e o séquito de fotógrafos apareceram.

A partir daí, tudo só podia dar errado. Ao ser fotografado jogando um dos pneus numa escavadeira, para fazer algo útil para a campanha, o presidente do Banco Central da República do Brasil, à sua revelia, acabou desempenhando papel de coadjuvante da maquiagem. E o cidadão Elder, ao ser repreendido em público pelas autoridades, virar motivo de chacota na vizinhança e ter sido feito de bobo, foi dormir pior do que acordou.

O borracheiro mora numa região que concentra 26% dos casos de dengue do Distrito Federal, e sua filha já foi picada pelo mosquito. Seu cuidado de pai com águas paradas, portanto, já era anterior à campanha do governo.

O motivo da gravidade desse episódio está no que ele retrata de perverso: a manipulação do poder público, o descaso para com o cidadão comum, a confiabilidade de respostas à crise.

Ontem, sábado, houve novo mutirão nacional. Desta vez foram despachadas 35 autoridades para a malha escolar do país e envolveu estudantes tanto do ensino público como privado. Louvável, sem dúvida. Mas nesse ziguezague que vai de Petrolina a Juazeiro, de Palmas a Teresina, São José dos Campos a Pindamonhangaba, Campo Grande a Cuiabá, entre outros, não constava, pelo menos até sexta-feira, nenhuma passagem por Campina Grande, na Paraíba, onde está fincado o Isea, principal maternidade pública da cidade e onde atua a médica Adriana Melo, a quem o Brasil deve o estabelecimento da relação entre o zika e a má-formação do cérebro de bebês.

Apesar da garantia de amparo formulada pela presidente Dilma às grávidas e mães de crianças diagnosticadas com microcefalia ou problemas congênitos, a realidade tem se revelado tão distante da promessa quanto as estatísticas do Ministério da Saúde referentes a casos de zika e síndrome de Guillain-Barré.
Não deixa de ser surpreendente que nem a presidente nem o ministro da Saúde nem a ministra das Mulheres e dos Direitos Humanos tenham feito uma única visita oficial a uma unidade hospitalar com atendimento a mães de bebês microcéfalos, para embalar um deles no colo e sinalizar, aí sim, alto e bom som na presença ostensiva da mídia mundial, qual o rosto, o custo humano, a dor da doença. Sem maquiagem.

No GLOBO de 29 de janeiro deste ano, esse retrato apareceu pela primeira vez numa foto emocionante e corajosa de quase meia página. Um pai amoroso segurava seu bebê diminuto contorcido pelo choro interminável que, aprendemos, vem junto com a microcefalia. A partir dessa reportagem de Ana Lucia Azevedo e Renata Mariz, o dique se abriu, e a mídia tem mostrado bebês e suas mães saírem da clandestinidade.

Falta ao poder público fazer muito, senão tudo nessa parte da tragédia. Sem efeitos especiais baratos.

Dorrit Harazim

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