domingo, 1 de outubro de 2023

O chamado Brasil brasileiro

Comecemos por opiniões antigas, como esta de uma carta de Capistrano de Abreu a João d’Azevedo: O jaburu… a ave que para mim simboliza a nossa terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas for nidas, e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste…

Paulo Prado abre seu livro Retrato do Brasil com esta afirmação: Numa terra radiosa vive um povo triste.

Tão triste que em 1925, em Petrópolis, Manuel Bandeira, que tinha “todos os motivos menos um de ser triste”, resolveu “tomar alegria”.

Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda. Ninguém se lembra de política… Nem dos oito mil quilômetros de costa… O algodão do Seridó é o melhor do mundo?…

Que me importa?


Não há malária nem moléstia-de-chagas nem ancilóstomos.

A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca. Eu tomo alegria!

E Sérgio Buarque de Holanda, na primeira página de suas Raízes do Brasil:

…Somos ainda hoje desterrados em nossa terra.

O consolo é lembrar aquela coisa de Euclides da Cunha em Os Sertões: O sertanejo é, antes de tudo, um forte.

Enchemos o peito de orgulho. Mas Euclides prossegue dizendo: Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

Viram? Para falar bem do homem do sertão ele desmerece o homem da praia.

Mas o próprio sertanejo, embora possa se transformar em “um titã acobreado e potente”, não é figura muito boa: … É desgracioso, desengonçado, torto… reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos…

E mais adiante Euclides proclama: Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma…

Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.

Este dilema me faz lembrar um outro que me assustava quando eu era menino. Não sei se era frase de homem célebre ou propaganda de algum formicida: Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil.

Isto me dava aflição; eu me perguntava por que é que nós todos não íamos urgentemente matar saúvas.

Não matamos. Não morremos. Convivemos. Oswald de Andrade exclama, no seu “Manifesto Antropofágico”, de 1928: Tupi or not tupi that is the question.

E é outro paulista Andrade, Mário, que faz uma comovente confissão brasileira.

Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! Muito longe de mim Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu…

Essa fundamental solidariedade me impressionou quando uma lavadeira que eu tinha aqui no Rio, Sebastiana, me disse que não tinha podido dormir aquela noite: uma chuva com vento invadira o seu barraco no morro do Cantagalo. Seu menino amanhecera doente, e ela também sentia uma dor no peito.

“Mas enfim”, disse, “isso é bom para a lavoura.”

A velha Sebastiana viera de Carangola e não tinha mais lavoura nenhuma; e até a casinha que ela fizera lá em Minas, “perto do comércio”, fora registrada em nome do seu marido, que não era seu marido porque era casado com outra. E ela descia os caminhos perigosos, escorregadios, do morro, com a trouxa de roupa na cabeça, e me dizia: “É bom para a lavoura.”

É uma maneira de dizer na roça. Pode ser maneira de pensar. O Brasil é, principalmente, uma certa maneira de sentir.
Rubem Braga

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