terça-feira, 14 de abril de 2020

Quarentena

A quarentena continua e, por esta altura, já sabemos que será muito mais longa do que se podia prever. Estamos em confinamento há muitos dias e, se há coisas que se aligeiraram pela força do hábito, outras pesam mais agora, pelo cansaço e pelas reflexões que o tempo maturou.

Para nós, as últimas semanas têm sido bastante serenas, apesar de não termos trabalho nem previsão de voltar a ter. Já nos cancelaram a agenda até ao final de junho e, além da possibilidade de cancelarem ainda mais, há muito que não se marcou por estar tudo suspenso. Ou seja, não é só a agenda que se perde, é também a que não se marca, nesta incerteza que paralisou tudo. Estamos preocupados, obviamente, mas sobretudo pelas nossas equipas, pelas agências, pelos colegas. É que a sorte de termos conseguido poupar dinheiro para tempos difíceis tem permitido menos angústia familiar, mas essa não é, infelizmente, a realidade da maioria dos trabalhadores do setor da cultura.

A romantização da quarentena (como se lê em muitas janelas espanholas e italianas) é, de facto, um privilégio de classe. Estar em confinamento sabendo que a cada dia que passa o dinheiro está mais perto de esgotar, que o negócio está mais perto de falir, e que as obrigações estão mais perto do prazo de pagamento, é muito diferente de estar em casa com o salário garantido. A angústia de estarmos a viver uma pandemia, com todos os medos que isso acarreta, somada à angústia da falência iminente e da crise económica que se aproxima, faz da quarentena toda uma outra experiência.

Assim como é muito diferente estarmos em confinamento numa casa espaçosa, confortável, com espaço exterior, equipada com televisão, internet e com livros à disposição, do que estarmos, como acontece agora em todas as favelas brasileiras, amontoados numa assoalhada com toda a família, em condições de grande precariedade e sem acesso às mais básicas condições de salubridade.

É diferente estarmos de quarentena aproveitando o tempo, serenamente, para ler, arrumar a casa, ver filmes e cozinhar alegremente, do que ser uma mãe sozinha com filhos pequenos e em teletrabalho. Sem mãos a medir, acumulando a lida doméstica, o emprego que não se pode perder e a gestão dos filhos sempre em casa e com obrigações escolares a cumprir.

É diferente estarmos de quarentena em família, usufruindo do convívio para amenizar o confinamento, ou estar completamente só, durante semanas ou meses, isolado de quem mais se ama e exposto a esta gigante provação à saúde mental. Assim como é diferente estarmos em paz e em segurança, ou sob violência física e psicológica, como tantas mulheres para quem a casa não é um lugar seguro e que agora são obrigadas a estar em confinamento com o seu agressor, 24 horas por dia.

É também muito diferente estarmos em isolamento profilático, saudáveis e funcionais, ou estarmos doentes, com este vírus ou outra maleita qualquer, inseguros se devemos ir ou não às urgências, tendo de esperar muitas horas por um atendimento telefónico, aguardando análises ou exames cada vez mais difíceis de conseguir, e num momento de grande sobrecarga dos equipamentos de saúde.

A quarentena é um tempo em que a nossa condição se agiganta. Estamos confinados mais do que nunca às nossas circunstâncias. O corpo, a casa, a família e a nossa condição financeira são determinantes para definir os impactos que este momento histórico pode ter nas nossas vidas. E apesar de ninguém estar imune ao vírus, a nossa idade, a nossa saúde, as nossas condições de vida e a nossa capacidade de gerir emocionalmente a própria experiência de confinamento e de doença são diferentes e podem, de facto, fazer a diferença. Por tudo isto, é importante que o nosso sentido comunitário se agigante também, pois só assim podemos partilhar os privilégios e amenizar o peso que, sabemos, tende a pender sempre para o lado mais frágil.
Capicua

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