sábado, 9 de setembro de 2023

Quais são as questões sobre o marco temporal que não estão sendo debatidas

A decisão em andamento no STF sobre o marco temporal, para validação do direito dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais, envolve um conjunto complexo de questões que, na verdade, não estão sendo debatidas nem reconhecidas. Os ministros tentam encaixar na concepção de direito dos brancos o que os indígenas entendem ser os seus direitos.

O direito que tem falado pelos índios na verdade fala pelos brancos, porque é da lógica branca e não da lógica indígena. Uma decisão pelo marco temporal não será propriamente pelos interesses históricos das populações originárias. O que está em jogo será a oculta motivação da lei que é a de libertar a terra para sua conversão em renda fundiária capitalizada. A conversão da terra em terra de negócio. O oposto da concepção de território que da terra tem as populações indígenas como um bem, não como mercadoria.


É evidente a dificuldade para reconhecer a interpretação indígena das leis e normas que lhes dizem respeito. A de que contém não só o ponto de vista branco sobre os interesses indígenas, mas também podem conter a interpretação indígena desse ponto de vista branco.

Falta no debate a compreensão do modo indígena de interpretar as leis dos brancos a seu respeito. Que o fazem à luz de seu modo de vida, de seus valores, de sua visão de mundo. Nos anos 1970, quando o movimento indigenista começou a ganhar corpo e foram realizadas, em diferentes lugares, as assembleias dos povos indígenas, surgiu extensa verbalização sobre a concepção dos índios a respeito das concepções territoriais que deles tinham os brancos, o Estado e o capitalismo.

Embora neste caso do marco temporal os brancos julguem que está sendo discutido o direito à terra, os índios acham que o que estão questionando é o senhorio de cada povo indígena sobre o seu território.

No parecer de um dos ministros, a concepção de território indígena é regulada por sua ocupação e uso. Porém, a noção que os grupos rebarbativos do subdesenvolvido capitalismo brasileiro têm a respeito de ocupação e uso da terra nada tem a ver com o que deles têm os indígenas.

O tempo das concepções do branco que cobiça as terras indígenas é o tempo do lucro. De preferência o do lucro fácil, como no caso do desmatamento, em que o desmatador transforma em mercadoria o que não produziu, pilhou, que para o índio é um bem comum.

A agricultura indígena é agricultura de roça, rotativa. Mesmo quando se moderniza, e isso tem acontecido, ocorre com o uso racional e equilibrado do território e das diferentes qualidades de mata, terra, caça, águas que definem o cenário da sua divisão social do trabalho.

No entendimento dos indígenas, seus direitos territoriais são relativos a esse território mais amplo de sua concepção de uso racional e produtivo da terra e da natureza. A ausência da tribo em atividades econômicas de branco em partes do território indígena não significa abandono.

O antropólogo Darrell Posey identificou em território kayapó bosques, árvores e arbustos originários de florestas de sua travessia na migração em direção à cabeceira dos rios. São plantas medicinais, as farmácias das tribos.

Mencionado num dos votos do STF, no presente caso, o Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão, de 1755, que foi estendido ao Estado do Brasil em 1757, reconheceu os direitos territoriais dos índios em conexão com a suspensão, em relação a eles, das interdições estamentais que os definiam como socialmente inferiores. O território indígena como reconhecimento de sua condição humana, de sua condição de gente. Uma mediação essencial que o marco temporal anula, com a redução do território indígena a um reservatório de terra-mercadoria.

O Diretório de 1755 libertou-os da estratificação estamental, ao anular os signos de inferiorização social na mestiçagem, formalmente equiparando-os aos brancos. Esse detalhe não foi apreciado no voto do ministro que ao Diretório se referiu. Ressaltou-se, no entanto, a persistência da guerra justa na escravização do índio, na crise do cativeiro, sobretudo a partir do começo do século XIX.

A guerra justa era aplicada em determinadas situações, não em todas. A história social brasileira avança, desde a Colônia, nas brechas que lhe foram sendo abertas, como ocorreria também com o escravo negro durante toda a escravidão.

No caso dos indígenas, o direito ao território nasceu em conexão com o reconhecimento da sua condição humana, até no direito de acesso às funções públicas do poder local. O marco temporal quanto à propriedade da terra situa-se na guerra contra os direitos territoriais da população indígena numa história de crescimento econômico sem desenvolvimento social.

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