quinta-feira, 20 de julho de 2017

O mundo começa na Antártida

Mikhail Kornienko, astronauta russo, que passou 516 dias na Estação Espacial Internacional, orbitando ao redor da Terra, esteve em Coimbra, no departamento de Física da mais famosa universidade portuguesa, respondendo a questões dos estudantes. No decurso do evento chamou a atenção para a degradação ambiental no nosso planeta: “Lá em cima apercebo-me de como o ser humano está a destruir a própria casa, de como falta neve no topo do monte Kilimanjaro, no norte da Tanzânia. Também vi clareiras enormes na floresta da Amazônia”.

Se estivesse em órbita, no passado dia doze, Kornienko poderia ter visto um gigantesco iceberg, com um trilhão de toneladas e 5.800 quilômetros quadrados, se desprendendo da Antártida. O cataclismo em curso foi noticiado por jornais do mundo inteiro, mas não parece ter inquietado muita gente. No Brasil, há mais pessoas assustadas com a possibilidade de serem assaltadas, ao anoitecer, enquanto regressam a casa; em Portugal, a eventualidade de novos incêndios nos eucaliptais certamente apavora mais gente; nos Estados Unidos, haverá quem se inquiete com a febre dos estudantes que entram atirando nas respectivas salas de aula, enquanto na Suécia a preocupação maior é com o assédio sexual nos shows de rock. Serão preocupações legítimas, não pretendo diminuir nenhuma delas, mas o que se passou a semana passada na Antártida deveria sobrepor-se a todas.

Resultado de imagem para geleira se rompe na antártida

Ainda estão por avaliar as consequências imediatas e a médio prazo — para o clima, para a vida e para as atividades humanas — da diluição do imenso bloco de gelo no oceano. Mais importante, contudo, é o que esse desastre significa, ao demonstrar, de forma dramática, as consequências imediatas do aquecimento global.

Na fase em que estamos, negar o aquecimento global, insistindo em políticas energéticas que favorecem, no imediato, meia dúzia de grandes indústrias e corporações, mas que, a médio prazo, trarão terríveis consequências ambientais, deveria ser considerado um crime contra a humanidade.

O presidente norte-americano, Donald Trump, arrisca-se a enfrentar, nas próximas semanas, acusações de traição à pátria, devido a eventuais ligações que terá estabelecido, no decurso da campanha eleitoral, ao regime russo. Parece-me uma acusação menor, até irrelevante, em comparação com aquela que lhe deveria ser imputada se houvesse justiça no mundo: a de traidor da humanidade. A de traidor da vida.

Infelizmente, não seria o único líder mundial a ter de se sentar no banco dos réus. O (ainda) presidente Michel Temer, por exemplo, teria de responder pelas recentes cedências aos interesses da bancada ruralista, favorecendo a grilagem de terras e enfraquecendo as instituições governamentais ligadas à proteção do meio ambiente e dos povos indígenas.

Flutuando a 350 quilômetros da superfície terrestre, Mikhail Kornienko testemunhou com infinita tristeza a destruição da Amazônia e o desaparecimento dos gelos, ainda há poucos anos considerados eternos, no pico do grande e sagrado Kilimanjaro. Não terá sido por acaso que Kornienko se referiu aos dois eventos na mesma frase: afinal de contas, um decorre do outro.

A vida inteira escutei frases como, “é preciso proteger a Terra hoje, como herança para os nossos filhos”. Há trinta anos, enquanto estudava silvicultura em Lisboa, participei em diversos encontros e manifestações de movimentos ecologistas, em várias cidades do mundo, alertando para o aquecimento global e as suas consequências. A maioria das pessoas não nos levava a sério. Algumas até concordavam conosco, mas achavam esse perigo tão remoto que lhes parecia um combate algo fútil — como lembrar que precisamos proteger as abelhas para que a humanidade sobreviva (a frase é de Einstein).

O rápido desmoronamento da Antártida, que acontece diante do olhar estupidamente apático da maior parte de nós, mostra-nos que não se trata apenas de assegurar um mundo intacto para os nossos filhos: trata-se de assegurar a nossa própria sobrevivência e a integridade da civilização em que nos movemos.

Kornienko defendeu, no mesmo encontro, em Coimbra, a colonização de Marte. Porém, ao contrário de Stephen Hawking, que vê a colonização humana de outros planetas como uma alternativa à inevitável degradação do nosso, o astronauta russo entende que não devemos nunca deixar de olhar e proteger a Terra. Ainda assim, não concordo com ele. Antes de pensarmos em colonizar Marte, deveríamos investir toda a nossa inteligência na tarefa de manter viável a colonização da Terra.

O mundo começa na Antártida. O fim do mundo também.

José Eduardo Agualusa

Nenhum comentário:

Postar um comentário