quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Editar em tempos de cólera

Hildebranda tinha uma concepção universal do amor, e achava que qualquer coisa que acontecesse com uma pessoa afetava todos os amores do mundo inteiro
Gabriel Gárcia Márquez

Os muitos séculos que existem entre a primeira vez que um indivíduo morreu arbitrariamente por ter opinião e os nossos dias consolidaram a consciência de que a opinião é inata ao ser humano e, portanto, um direito não somente de tê-la, como também expressá-la, especialmente considerando sua natureza de viver em comunidade.



Por se tratar de uma conquista histórica, um valor quase folclórico que passamos de geração em geração, a liberdade de expressão tem algo da concepção universal do amor de Hildebranda Sanchez, na obra de Gabriel García Márquez: toda vez que acontece algo, é como se afetasse todas as liberdades de expressão no mundo inteiro. E é por isso que os editores, jornalistas e formadores de opinião de todo o mundo se manifestaram energicamente – suscitando, inclusive, inconformismo de muitos por não ter sido noticiado, com a mesma energia, o massacre de aproximadamente duas mil pessoas na Nigéria na mesma semana, ou por não se noticiar mensalmente o alto índice de homicídios de jovens brasileiros nas periferias.

Sim, a mídia de massa retratou o atentado a Charlie Hebdo com a dor de quem via o seu próprio editorial sendo atacado, potencializando o movimento Je suis Charlie, bem como o Je ne suis pas Charlie.

Basicamente, o movimento “ne suis pas” acrescenta o “mas” após a afirmação: “É um absurdo o atentado, mas os cartunistas pegaram pesado”; “É uma tragédia, mas eles sabiam que caçoar os muçulmanos daria nisso” etc.

Essa estrutura de raciocínio atribuindo parte da responsabilidade pela ocorrência do crime à vítima é a mesma que aquela máxima machista que atribui o estupro à roupa da vítima. Acrescentar qualquer “mas” ao atentado terrorista ao Charlie é dizer que eles pediram para morrer tanto quanto uma mulher estuprada estava querendo por causa de sua minissaia – não se pode culpar a vítima pela loucura alheia.²

Sei que muitos leitores tiveram acesso às polêmicas charges e ficaram chocados com seu teor – e elas foram feitas para isso mesmo: polemizar – e passaram a repensar sobre a tal liberdade de expressão. Talvez, pensando melhor, a liberdade de expressão teria limites, não?

Pois sim, a liberdade de expressão tem limites, como qualquer direito o tem. E, considerando que se trata de um direito fundamental, os limites não podem ser arbitrados pelo medo, pela moral, pelo “mimimi”, pela mediocridade, pelos religiosos (dos fundamentalistas aos não praticantes), pela conveniência ou ainda pela sogra. Direitos fundamentais devem ser limitados pelo próprio Direito: se a liberdade de expressão de alguém for ofensiva/excessiva a outrem, esse pode exigir judicialmente muita coisa – a reparação moral ou material, a retratação, o direito de resposta, a retirada de circulação etc. Pode exigir um tanto de coisas, mas não pode explodir o coleguinha, nem na França, nem na Nigéria, tampouco no Brasil.

Aliás, esse mesmo Estado de Direito também deve assegurar proteção às minorias, como no caso da minoria muçulmana que vive na França e passou a sofrer retaliações das mais diversas formas pelo reforço do preconceito que o ataque terrorista promoveu. Da mesma forma, também deve restringir atos da minoria muçulmana radical que vive na Nigéria e que quis impor novo ordenamento jurídico baseado em sua religião, resultando no lamentável massacre de dois mil cidadãos.

Por conta disso, não se pode incluir qualquer “mas” a direitos fundamentais, seja da minoria, da maioria, de bom ou mau gosto. Não se pode conceder liberdade de expressão apenas às expressões Don Juan que buscam agradar e conquistar a todos. E, se a expressão de alguém for excessiva, que o próprio Direito corrija, não a AK-47 mais próxima.

Tendo lembrado que temos um Estado de Direito na França e na Nigéria, gostaria de lembrar que, muito embora também tenhamos um Estado de Direito no Brasil, ter opinião por aqui é algo bem arriscado. Sem manter opiniões tão contundentes quanto os cartunistas e editores de Charlie, muitos autores e editores brasileiros recebem ameaças e violências das mais diversas formas.

No ano passado, a sede da Editora Abril foi depredada por vândalos, em retaliação à capa da revista Veja daquela semana. Gostem ou não da revista, ela assume uma postura editorial e, provavelmente por causa disso, sua editora foi atacada – apesar de ter sido numa sexta-feira de outubro, não se pode alegar que foi por causa do Halloween e dos “doces ou travessuras”...

Não raramente, o colunista da UOL Leonardo Sakamoto relata nas redes sociais as ofensas e ameaças que recebe por conta de sua coluna naquele portal de notícias. O Blog do Sakamoto não publica charges polêmicas como Charlie, mas igualmente possui opinião (goste você da opinião dele ou não) e se expressa.

Até mesmo Carlos Ruas, autor dos quadrinhos Um sábado qualquer, que utiliza humor leve para falar de religião, recebe ameaças e ofensas. E fico imaginando os diversos jornais, jornalistas, colunistas e autores que temos pelo Brasil afora expressando suas opiniões, o que já não receberam de ameaças ou violências. Muitos editores e autores já me confessaram não expor publicamente sua opinião para não correr riscos, e tampouco adotam linha editorial ou teórica clara para evitar qualquer conflito.

O que isso demonstra? Que se você tem uma opinião e não quer ter problemas, mantenha-a para si. Não a expresse. Opinar é insalubre. E quem vive de ideias, deve pleitear na Justiça do Trabalho o adicional por periculosidade. Imagine o que é ser editor e autor em tempos de cólera? Deveria haver um seguro para isso: Seguro-opinião contra terceiros.

Leia mais o artigo de Henderson Fürst

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