domingo, 25 de outubro de 2015

A força que vem das margens

A maior avalanche de problemas de nossa contemporaneidade – junção de crises nas esferas política, econômica, de gestão e no campo da moral – sinaliza um amanhã radiante. Excesso de otimismo? Vejamos.

Primeiro, a constatação: há um animus animandi no Brasil que sinaliza para a racionalidade, estreitando as torrentes de emoção. A sociedade toma consciência de sua força, da capacidade que tem para pressionar e exigir. Trata-se da ascensão do conceito de auto-gestão técnica, de uma aculturação lenta, porém firme, no sentido de fazer predominar a razão sobre a emoção.


O crescimento das cidades e, por consequência, as crescentes demandas sociais; o surto vertiginoso do discurso crítico, revigorado por pautas investigativas e denunciadoras feitas pela mídia; o repúdio à velha política que gera, por todos os lados, movimentos de revolta e indignação; e a extraordinária organicidade social, que aparece na multiplicação das entidades intermediárias, hoje poderoso foco de pressão sobre o poder público - formam, por assim dizer, a base de um longo processo de mudanças.

As conseqüências se farão sentir no fortalecimento do edifício democrático. Sinaliza-se um vento favorável à democracia direta, aquela que nasceu em Atenas dos IV e V séculos, quando os cidadãos, na praça central, podiam se manifestar diretamente sobre a vida do Estado. Vivenciamos, hoje, uma borrasca que respinga sobre a democracia representativa, tendo como causa o declínio dos mecanismos clássicos da política, dentre eles, o arrefecimento ideológico; a pasteurização partidária; o enfraquecimento dos Parlamentos; a desmotivação das massas eleitorais; o descumprimento das promessas da democracia (justiça para todos; educação para a cidadania; combate ao poder invisível, entre outras citadas por Norberto Bobbio em seu excelente O Futuro da Democracia).

É fato inegável que um dos avanços se dá pela passagem da democratização do Estado para a democratização da sociedade. Esta democracia social é fruto de um poder ascendente que se consolida pela força emergente das entidades que fazem intermediação de interesses de grupos e setores. A sociedade se torna cada vez mais policrática, multiplicando os centros de poder, muitos deles assumindo posições diferentes da visão das instituições do Estado. Intui-se que cresce, entre nós, o modelo de autogestão técnica, que se enxerga em Nações desenvolvidas, pelo qual o cidadão sabe o que quer e escolhe os meios para alcançar suas metas.

O fato é que uma sociedade mais plural e participativa – como a que se começa a enxergar no país - propicia maior distribuição de poder; maior distribuição de poder abre caminhos para a democratização social; por conseguinte, a democratização da sociedade civil amplifica a democracia política. Caminhamos firmes nessa direção e a prova mais eloquente de tal tendência se verifica na formidável malha de centros de influência instituídos em todos os âmbitos.

Esse fenômeno enfraquece o poder político representado pela instituição parlamentar? De certo modo, sim. A formação de novos polos de poder no meio e nas margens também se ancora na falta de respostas adequadas por parte da representação política. Partidos políticos constituem um ente amalgamado, massa incolor, sem matiz ideológico. Seus integrantes, idem. Desnaturam suas identidades e não possuem propostas substantivas. O declínio geral das ideologias, apenas para lembrar, decorre da débâcle do socialismo clássico, da globalização e da interpenetração de fronteiras entre países.

No campo do pensamento, as doutrinas se aproximam e se fundem, resultando na desideologização do discurso político, até porque as lutas do passado - travadas sob o manto da clivagem ideológica - perderam sentido. Os novos adereços doutrinários procuram compor vertentes do liberalismo com sobras do socialismo e, como resultado, desenvolve-se a modelagem social-democrata.

As oposições perdem vigor. O oposicionismo, nos dias de hoje, se dá menos em função de uma visão programática e mais em função de projetos circunstanciais (e pessoais) de poder, centrados no pragmatismo e inspirados nas demandas dos novos núcleos de pressão. Por outro lado, a ação política voltada para a conquista do poder leva em consideração a micropolítica de grupos regionais. Dessa forma, o processo político no Brasil se estreita.

E o que resulta dessa nova engenharia social e política? Uma força ascendente-centrípeta, de baixo para cima e de fora para dentro, que reforça a democracia representativa, inoculando-a com valores da democracia direta, entre os quais manifestações e demandas dos cidadãos nas assembléias de suas entidades. Esse empuxo se contrapõe à força descendente-centrífuga, de cima para baixo e dentro para fora, a cargo dos poderes da República e da tecnoestrutura governamental.

Que impactos essa alteração provocará na feição social? O fortalecimento da democracia participativa; a descoberta pelos cidadãos de que seu voto é a principal arma de defesa da cidadania; a instigação para que grupamentos e setores se organizem em torno de entidades; a mudança nos padrões tradicionais da política; o fechamento do ciclo do engodo, da mistificação e da corrupção.

Antes disso, o país mais afundará. O fundo do poço está por vir. Temos, porém, condições de fazer com que o Brasil volte, mais adiante, a caminhar firme. Como lembra o poeta Carlos Ayres Britto, ex-presidente do STF: “o fundo do poço pode não ser de areia movediça. Pode até nem ser de chão batido. Mas de molas ejetoras, a depender de quem despenca. Foi o que me disse uma velha cigana flamenca”.

Temos de acreditar que o Brasil será ejetado na direção de horizontes mais largos e promissores.

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