segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Crônicas da Infâmia



5 – Dos Partidos/ Das Governações


Quem tente interpretar a humanidade pelos seus olhos, descobrirá muita coisa estranha que lhe causará perplexidade
Samuel Bellow, in “ O velho sistema"
Vive-se um tempo ominoso. Um tempo de sobressaltos inesperados agitado por uma febre que se consome em convulsões.

Este é o tempo em que o espectro de uma guerra generalizada se pensava moribundo. O tempo distante do final catastrófico da última guerra mundial que se vira transformado em funda e delineada expectativa de uma paz duradoura.

O tempo europeu em que , de promessa em promessa, se construiu uma organização de estados que se ligavam por laços culturais e civilizacionais, aquilo que comumente se designava por espírito europeu.

Um tempo que, de união em fractura, se deixou seduzir pela força do poder económico.

Um tempo europeu que adulterou essa identidade humanista para se agregar à volta do estatuto de cifrões, do domínio do capital. Estatuto que divide, rotula e diferencia. Os fortes e os fracos. Os ricos e os pobres. O centro e a periferia. O Norte e o Sul.

Um tempo cego e sujo em que vinga o interesse, o lucro e o capital.

O homem deixou de ser o centro, o alvo, o sujeito inspirador de qualquer pequena ou grande realização. Passou a ser o meio, o objecto que tem valor, não pela sua condição/dimensão humana, mas pelo número que representa , enquanto produtor/detentor de riqueza. E neste território, em desnorte humanista, aporta um movimento de gente em desespero, uma intensa diáspora de povos em fuga de uma morte anunciada nos respectivos países de origem.

A Europa, ainda adormecida, levitava num sono letárgico que a impedia de visionar a tragédia que se mostrava real no seu próprio espaço, permitindo que cada parcela se organizasse per si. Construíram-se muros. Elevaram-se barreiras e encurralam-se pessoas numa ânsia fiscalizante e fiscalizadora.

E uma dor envergonhada apanha-nos. A infâmia está à solta, tal como ilustram as palavras de Christophe Dejours: On fait passer pour un malheur ce qui relève en fait de l’exercice du mal commis par certains contre d’autres.

Instada a acordar, esta Europa começa a reagir. Contudo, as imagens, que jamais se deviam repetir, continuam a nos dilacerar todos os dias. Todos os dias.

E Portugal , país periférico, (situado na costa mais ocidental da Europa, lá, onde a terra se acaba e o mar começa), abre as portas. País de velhos marinheiros , que se fizeram ao mar, quando a terra lhes soçobrou, cede acolhimento. Presta-se a receber quem, como tantos da sua gente, já experimentou o medo da guerra, a falta de chão, a fuga da terra-mãe transformada em campo de batalha. Preparam-se comissões, cria-se uma plataforma de acolhimento.

E neste cenário, Portugal europeu enreda-se numa campanha eleitoral. Aproxima-se o tempo em que os lugares do poder vão a concurso.

Seremos, nós, o júri da selecção. Os candidatos são os Partidos. Os eleitores não correspondem aos eleitos. E quando os eleitos são transformados em Governo , esquecem todo o processo selectivo. Os programas não vinculam quem os assina. A governação não se estabelece numa relação de causa → efeito.

A causa deixou de assentar na res publica. O efeito não é servir as pessoas em defesa/promoção do bem comum. O efeito é, antes, uma espécie de sortilégio de anfetaminas que faz do poder o centro da governação. Perdem-se as causas eleitorais pela causa eleitoralista. Simulez, dissimulez, souriez. Et peu importe si c’est faux, escreveu o laureado do Goncourt (2011), Alexis Jenni.

O que interessa é convencer para ganhar. A cadeira do Poder está vaga. Por isso, há Partidos que prometem e governos que não cumprem.

Nunca me inscrevi num Partido. Creio que não o fiz por me não rever em qualquer um.

Havia sempre um distanciamento entre a palavra e o facto, entre o verbo e o feito, entre o que se faz e o que se prometeu que me afastava definitivamente. Tal como Flaubert, se algum partido tenho é o da indignação.

A credibilidade entre o ser e o fazer, entre a ideologia e a praxis, entre a promessa e o cumprimento não passa de mera ilusão.

E, se Paul Valéry, o autor de Mélange, já nos disse que os homens se diferenciam pelo que mostram e se parecem pelo que escondem, é tempo de separar a verdade da falsidade. É tempo de erguer a autenticidade porque é tempo de confirmar quem pretende manipular o país.

O país não precisa de mais sofrimento. O país não precisa de mais engano.

Chega de tanto logro, de tanto desemprego, de tanta pobreza, de tanta desesperança.

Acabemos com a política corcunda .Que se silencie a ignóbil voz da infâmia para que não haja quem a possa seguir.

Maria José Vieira de Sousa

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