Mais ainda: teremos de conviver eternamente com a herança ibérico/portuguesa e os valores jogados sobre o nosso imenso território: o patrimonialismo, com as mazelas do fisiologismo, mandonismo, grupismo, familismo? Não podemos desenvolver nossa modelagem valorativa, nosso ethos e moldar nosso próprio modelo de democracia? Ou será que devemos aceitar como definitivo o lema – o pau que nasce torto não tem jeito, morre torto? Ademais, só meia dúzia de desonestos intelectuais aprecia o exercício de execrar nosso processo civilizatório.
A resposta é complexa, pois implica intrincada engenharia de mudanças. E se a barreira tem o nome de mudança, a questão esbarra na lição de Maquiavel: “Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas. Na verdade, o reformador tem inimigos em todos os que lucram com a velha ordem e apenas defensores tépidos nos que lucrariam com a nova ordem.”
Sejamos realistas. Há poucos reformadores na esfera política e há muitos que lucram com a manutenção dos velhos sistemas. Entre os que apregoam mudanças, uns apontam para medidas pontuais e momentâneas, cujo escopo não abriga a matriz das mazelas, e outros há que nem sabem por onde se chega ao caminho das mudanças.
Sob esse feixe de hipóteses, três vertentes se apresentam como as mais prováveis na esfera das ocorrências futuras: a primeira é de que a atual crise será ultrapassada pela próxima, lembrando, porém, que a do momento é das mais graves da quadra contemporânea; a segunda, ancorada ainda na banalização, mostra o brasileiro cada vez mais impermeável à barbárie da política; e a terceira, regada à esperança, põe fé na crença de que uma flor pode nascer no pântano.
Ou seja, que o Brasil semeará jardins de ética no meio do lamaçal. As duas primeiras vertentes são maléficas para o caráter nacional. Comparam-se à maldição de Sísifo, aquele que repetirá todos os dias da eternidade o castigo que foi lhe imposto pelos deuses, o de carregar uma pedra sobre os ombros e depositar no topo da montanha.
O fato é que a repetição do maçante exercício de expectativas frustradas acaba brutalizando os instintos das pessoas. Que se tornam impermeáveis aos eventos que ocorrem ao seu redor, mesmo os mais catastróficos. É como seres catatônicos. Essa seria a carga psicológica que a crise deposita sobre a alma nacional.
O ciclo de banalização de escândalos por que passa o País gera desconfiança, distanciamento entre a esfera política e sociedade, arrastando valores como a racionalidade, o civismo, o amor à Pátria, o sentimento de inclusão, a identificação com os símbolos nacionais, o orgulho de pertencimento a uma sociedade com padrões éticos e morais.
Há, porém, quem distinga as luzes de um contraponto, um sinal de esperança. E esse sinal acontece quando a sociedade, cansada de tantas promessas, embalada na mistificação da propaganda política, decide dar um basta ao estado de calamidade a seu redor.
O que fazer diante das filas imensas nos corredores de hospitais? O que dizer diante da insegurança que grassa por toda a parte? Como agir diante de promessas mirabolantes, reformas que não acontecem? O que pensar se prometem o céu, mas é o inferno que entregam? Ir às ruas. Dar um basta. Essa é a hipótese do contraponto, que leva em conta o eco da tuba de ressonância da mídia.
Todas as camadas – com acesso à TV e ao rádio – veem a lama que escorre da arquitetura política. As marolas de insatisfação começam a deixar o centro do oceano social e a correr até as margens. Do Sudeste, com a força extraordinária de suas trombetas midiáticas e movimentos organizados, espraia-se uma onda avassaladora que faz expandir o PNBInf (Produto Nacional Bruto da Infelicidade).
As conexões psicológicas formam o adubo para um jardim florescer no lamaçal. O sistema cognitivo capta o som das ruas, o grito de indignação, a vontade de dar uma resposta dura aos meliantes e assim por diante. De maneira lenta e gradual, cristaliza-se a convicção de que os desvios, a roubalheira, a infração a valores morais e princípios éticos nascem e se desenvolvem na roça dos próprios autores das leis. Que eles, então, assumam suas responsabilidades. É assim que grupos e setores abrem o grito preso na garganta em sinal de protesto e indignação.
Da sensação de que os tonéis da corrupção estão locupletados, o brasileiro extrai a argamassa para aumentar sua descrença nos governantes e nos representantes. É o que explica os 70% e avaliação negativa da presidente Dilma e a imagem no fundo do poço dos nossos políticos.
As negociatas desenvolvem um mecanismo de repulsa e a expressão crítica toma corpo, deixando seu verbo ácido nas redes sociais. As ondas de indignação se propagam. Forma-se, aqui, a composição química que deverá impor ao país uma nova paisagem, onde possamos contemplar uma flor vicejando em pleno pântano, com sua brancura, a simbolizar a assepsia, pureza, horizontes claros.
Vislumbrar um futuro jardim nos lamaçais da política é ser exageradamente otimista? Alguns acham que sim. O saudoso advogado e jurista Saulo Ramos, em seu belo O Código da Vida, já inseriu este escriba no território dos “puros, poetas, idealistas”, desejando que tenha “razão”. Para ele, “o Brasil virou um país autófago.” Quem acena com a bandeira da esperança continua a acreditar na flor de lótus brotando na lama da política.
Gaudêncio Torquato
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