Na segunda metade do século XIX, os ingleses impuseram ao governo brasileiro a proibição do tráfico de escravos. Podiam até estar agindo apenas por seu próprio interesse, de modo a garantir a futura existência de um mercado consumidor para a produção das suas fábricas que se multiplicavam com a Revolução Industrial. Mas, nesse momento, desempenhavam um papel progressista e defendiam a dignidade humana. Para garantir o cumprimento dessa exigência aparentemente libertária, embarcações britânicas patrulhavam as águas do Atlântico Sul, aprisionando os tumbeiros que conseguissem interceptar. É claro que o contrabando negreiro continuava, às escondidas. E o Brasil fazia de conta que suspendia o tráfico. Mas agia apenas para manter as aparências. Daí a origem da expressão “para inglês ver”, usada para exibirmos uma imagem falsa aos olhos do estrangeiro. E ficarmos bem na foto, como se diz hoje.
Até há pouco tempo, os meios universitários estrangeiros e a imprensa internacional em geral distinguiam bastante bem a situação política brasileira da existente em seus vizinhos hispano-americanos, bem como em variados regimes ditatoriais de países emergentes em outras partes do mundo. E não apenas pelo nosso potencial econômico e pela disposição de enfrentamento e correção da desigualdade social por meio de programas de distribuição de renda e diminuição do abismo entre as classes. Mas, desde o fim da ditadura militar, o Brasil vinha mostrando a consolidação de suas instituições democráticas, eleições regulares com possibilidade de alternância de poder, imprensa livre e atuante, poderes independentes, respeito à Constituição. Incontáveis vezes, em foros de debate internacional, tive a oportunidade de ouvir desses observadores análises que destacavam a autonomia da imprensa e a soberania do Judiciário como fundamentais traços distintivos da democracia brasileira, frente aos vizinhos bolivarianos.
É exatamente nessa área, de desmoralização da imprensa e da Justiça, que o governo resolveu atuar agora, em sua ofensiva de contranarrativa do que está acontecendo no país desde que há dois anos começaram as investigações policiais de irregularidades num posto de gasolina e lava a jato de automóveis no Paraná, trazendo à baila doleiros, sonegação fiscal, evasão de divisas, cartel de empreiteiras, licitações combinadas, desvio de dinheiro da Petrobras, propina a dirigentes e políticos, compra de apoio parlamentar, contas ilegais no exterior. E mais, ao que tudo indica, tentativa de obstrução da Justiça.
Nessa estratégia vimos nos últimos dias uma escalada de ações para inglês ver, muitas vezes manipulando gente de bem, que não compactua com bandidos e se deixou convencer de que tudo não passa de uma perseguição pessoal do Judiciário e da mídia contra Lula ou o governo, ou de que há mesmo um complô dos inimigos do povo para tirar dos pobres tudo o que eles melhoraram nos últimos tempos ou liquidar a Petrobras para que os ianques venham se apossar dela a preço de banana.
Para isso, desqualificam as investigações. Acusam a imprensa de mentir, passando por cima do fato de que já foram localizados e bloqueados milhões de dólares no exterior, para não falar dos milhões de reais já recuperados. Repetem que impeachment é golpe — por mais que ministros e ex-ministros do STF já tenham negado essa interpretação, desde que os preceitos constitucionais sejam respeitados. Prendem-se a tecnicalidades e firulas jurídicas, esquecendo o ensinamento de tantos outros juristas, como Evandro Lins e Silva, citando Nélson Hungria, por ocasião do impeachment do Collor: “O sigilo não protege o crime.”
Então, a presidente dá entrevista à imprensa internacional, e faz comício no Planalto diante de embaixadores estrangeiros para angariar apoios à sua tese de que o Brasil não está funcionando de modo democrático. Um diplomata usa canais oficiais para atacar as instituições do país. Intelectuais respeitáveis, por mais bem intencionados que possam ser, abrem mão de qualquer análise menos rasteira e se precipitam em assinar manifestos que enfileiram palavras de ordem sem compromisso com os fatos ou qualquer sutileza. Ao colocar sua própria inteligência a serviço de um palavrório que não assinariam individualmente, embarcam na manada, esquecem sua responsabilidade e acham que estão prestando um serviço à democracia e ao Brasil.
A investigação contra Collor foi possível, entre outras coisas, porque ele mesmo acabara com a possibilidade de emissão de cheque ao portador, obrigando à identificação do beneficiário. A Lava-Jato vai em frente, entre outras coisas, porque a Constituição de 88 deu poder ao Ministério Público e no próprio governo Dilma uma lei instituiu a colaboração premiada. Não é a Inquisição do Moro. Por mais que a chamem de delação, é uma ferramenta poderosa para revelar crimes ocultos — se eles existem e depois são comprovados. Isso não é perseguição nem golpe. É fato. Para qualquer um refletir, e não apenas inglês ver.
Ana Maria Machado
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