Lembrei-me da bazófia do Lula declarando haver 300 picaretas no Congresso Nacional. Com o vazamento da lista da Odebrecht com mais de 300 nomes de políticos suspeitos de corrupção, de mais de vinte partidos diferentes, é preocupante o desdobramento que pode ter para a Operação Lava Jato. Pois o recado implícito na lista se baseia no argumento da generalização, do tipo "todo político é corrupto". Tanto é que o juiz Moro a colocou em sigilo, uma vez que governistas já o acusam de partidarismo. Mas o fato é que a lista, apontando para a generalização da responsabilidade de todos os políticos, resulta ser injusto condenar a pessoa singular deste ou daquele, o que acabaria com todos “perdoados” por antecipação.
Independente do largo espectro de partidos no Brasil e a geleia de suas opções doutrinárias, tenho procurado demonstrar nesta coluna que este cacoete de argumentação por falácias é típico do viés esquerdista que tomou conta de nossa narrativa política. Acompanho, inclusive, na cobertura da grande imprensa, a doença do relativismo moral presente em nosso imaginário social, não apenas do povo, mas de parte considerável de nossas elites, que impossibilita a efetiva responsabilização criminal por livre escolha de condutas sociais condenáveis por parte de cidadãos livres, quando, sobretudo os governistas, insistem no falso argumento esquerdista da generalização de que no fundo "a culpa é da sociedade". É a velha história: se todos somos culpados em sociedade, então ninguém pode ser individualmente responsabilizado por nada. Aliás, é oportuno entender que esta velha falácia do argumento da generalização é cristalizada em nossa cultura política a partir da premissa rousseauneana de que o homem é naturalmente bom e é a sociedade que o corrompe, em perspectiva filosófica oposta à tradição hobbesiana do homem como lobo do homem.
Se este último é a origem do pensamento político liberal e realista do iluminismo inglês para todo o mundo moderno de origem saxã, aquele do bon sauvage tem sido a origem da matriz socialista utópica e esquerdista do mundo latino, de que temos sempre de perdoar o indivíduo e condenar a sociedade. Ou por outra, absolvê-lo por antecipação, trocar a culpa individual passiva de apuração e punição por uma culpa social difusa e impune. O que explica, inclusive, o afastamento da doutrina cristã do livre arbítrio, da natureza do pecado e da condenação adâmica. Esta tem sido a sina da política brasileira, não fosse o fenômeno do esgotamento da paciência dos cidadãos nas recentes manifestações querendo nos mostrar exatamente o contrário: uma intensa busca coletiva por responsabilização política individual por tudo o que nos aflige. Para além da responsabilidade social das empresas, da responsabilidade fiscal dos governos e da responsabilidade civil dos indivíduos, queremos a responsabilidade política de todo e qualquer cidadão, sobretudo dos titulares de mandatos eletivos.
Por outro lado, esta opção brasileira pela cultura de impunidade, às custas de uma cultura de plena cidadania, não é apenas expressa na política, mas está arraigada na conduta social e na crença popular do homem cordial, de nossa dificuldade em discriminar e punir o próximo, o semelhante, como se todos fôssemos cúmplices vizinhos de porta ou de rua. Sublinho para isto o antigo ditado popular que consagra nossa preferência pelo contrato social da impunidade: “quem tem telhado de vidro não joga pedra no telhado do vizinho”, na sua versão de salão, ou na versão de rua, “macaco que tem rabo de palha não toca fogo no rabo do outro”. E assim seguimos neste pacto antropológico de perdão por antecipação, suspensão de juízo moral, acordão da vista grossa. Na política, não se trata apenas de preferir a suspeita tradição esquerdista de renegar a responsabilização individual e objetiva pela culpa coletiva e difusa que suprime o processo penal. Mas de entulhar o estado com ações afirmativas na busca de um igualitarismo revanchista, pender a balança da justiça para políticas de opção preferencial pelos mais pobres e vulneráveis sociais, numa visão de mundo jesuítica do evangelho difusor da culpa original do tipo “atire a primeira pedra aquele que nunca pecou”, culminando com a opção preferencial pelos pobres de espírito da visão lulopetista do tipo “mexeu com Lula, mexeu comigo”. Traço dominante da cultura de compadrio, tolerância, e não persecução penal, consagrado até mesmo num samba clássico de Wilson Batista dos anos trinta do século passado: "Se o homem nasceu bom/ E bom não se conservou/ A culpa é da sociedade/ Que o transformou”.
Não, caro Marcelo Odebrecht. A sua lista não convencerá a cidadania brasileira de que todos os políticos são iguais, inimputáveis e inalcançáveis pela necessária personalização da lei penal, quando todos já estamos fartos desta pizza invariavelmente servida pelo cinismo dos mesmos. Resolvemos comprar a briga da transformação de toda uma cultura política conjugando as ações das lideranças dos cidadãos manifestantes e dos profissionais da imprensa e da Justiça mais conscientes. Para ser crível e útil, a sua lista terá de ser complementada com a sua colaboração premiada, distinguindo a parte dos que receberam propina dos que receberam ditas doações “legais”. Pois estamos fartos do relativismo moral, das falácias da generalização e do excesso de esperteza dos niilistas de algibeira. Sobre sua polêmica declaração a propósito da educação moral que dá às suas filhas, alguns de nossos melhores comentaristas já destacaram essa enorme e perigosa corrupção de valores que se instalou em nossa mais fina elite, incapaz de discernir moralidade pública de um simples código mafioso como a omertá. E presente não só no cinismo do corporativismo empresarial como no do sindicalismo selvagem de sempre colocar interesses setoriais acima do interesse público. Pura ignorância política sobre o verdadeiro sentido da paródia “do fim que justifica os meios”, tomada tão simplesmente como o pastiche do vale-tudo.
A nota da Odebrecht, logo após o vazamento da lista, sobre sua disposição de colaborar com a Justiça não pode ficar na promessa ou ser negada pelo MP, caindo no vazio. Ou fica parecendo a famosa bravata do José Dirceu de que o PT não rouba nem deixa roubar. Afinal, tudo começa por se resgatar os valores da honra e da palavra empenhada da tradição humanista das alegadas convenções de classe social do esquerdismo. Pois o que prevalece é a versão cínica da velha falácia da desapropriação coletivista que, na verdade, é o menoscabo fatal do que representa a propriedade privada enquanto responsabilidade por escolhas de conduta de homens verdadeiramente livres! Não só maximizada pela paródia brechtiana “de que nada significa o assalto a um banco diante do próprio banco”, como pelo correspondente pastiche da declaração odebrechtiana de que roubar é menos grave do que dedurar! Pois, a cada povo, a cultura política que merece: o relativismo moral celebrizado pelo chiste esquerdista do dramaturgo alemão e a correspondente carnavalização da política reproduzida pela lista da Odebrecht, perdendo nosso Príncipe Empreiteiro a grande oportunidade de passar a limpo a República que legará às suas filhas.
Decididamente, precisamos de elites que nos representam de fato e que possam dar conta de um verdadeiro projeto de nação. Que venham a ser reconhecidas pela sua mais fundamental função, que é a de orientar e servir de exemplo aos nossos pósteros e a toda a sociedade. Que somos todos nós, cidadãos pagadores de impostos, conservadores em essência, cônscios da importância de valores morais e para além de limites legais. Para além da generalização da política como atividade corrupta por definição, a visão da Operação Lava Jato como causa da crise de confiança no Brasil, é também uma absoluta falácia de argumento do tipo non sequitur, pois a verdadeira causa são os crimes revelados de formação de quadrilha, extorsão, captação ilícita de sufrágio, estelionato eleitoral, obstrução da justiça, peculato e tantos outros tipos penais. A visão da política como banalização do mal, que deve fazer Hanna Arendt se revirar no túmulo, começa com a degradação de seus valores morais, como quer nos fazer crer a generalização da lista da Odebrecht. Não é apenas triste. É perigoso para a República e a própria democracia. Pois a diferença de Brecht para Odebrecht é mais do que uma ode. É a corrupção dos valores que degrada a política e toma, entre outros, paródia por pastiche.
Jorge Maranhão
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