domingo, 6 de março de 2016

Perda de consciência antes da guilhotina

São clássicos dois fenômenos de ciência política ocorrendo hoje no Brasil. O primeiro é a alienação cega dos governantes em relação ao quadro real dos momentos históricos decisivos pré-ruptura institucional. O segundo é o retardo dos atores das forças políticas em assimilar e se sintonizar com o clamor popular, ocasionando a ruptura.

Quanto ao primeiro, a passagem mais emblemática é a atribuída a Maria Antonieta reagindo ao clamor da plebe por pão. Teria sugerido brioches, a sério. Resultado: foi decapitada por uma engenhoca engendrada por um médico, um certo Doutor Guillotin na Revolução Burguesa de Paris. Alegava o doutor que o seccionamento abrupto da medula espinhal logo abaixo do bulbo cerebral evitava o sofrimento dos enforcados, pois a perda da consciência era imediata. Enganava-se o doutor.A perda da consciência dos decapitados já se dera no exercício do poder.


Hoje já se sabe que L'Autrichienne (a austríaca) ou L'Autre-chienne (a outra cadela), como era apelidada raivosamente pelo povo a última rainha da França, jamais proferiu tal frase sobre os brioches. Mas era notória a sua alienação e distanciamento das agruras populares num gueto palaciano em saraus operísticos, enquanto os miseráveis proliferavam à sua volta e a burguesia se armava para derrubar a monarquia.

Outro exemplo clássico do mesmo fenômeno dessa alienação cega é o episódio histórico do Baile da Ilha Fiscal. A monarquia já caíra de fato, e seus ocupantes bailavam.

O baile, às margens da Baía da Guanabara, se realizou a exatos seis dias da Proclamação da República. Oficialmente, era para homenagear a tripulação de um navio chileno, o Almirante Cochrane, que se encontrava fundeado em águas brasileiras.

Mas o Visconde de Ouro Preto, presidente do Conselho de Ministros, aproveitou para saudar pomposamente as bodas de prata da Princesa Isabel com o Conde D’Eu, gastando na festança o equivalente a 10% do orçamento da província fluminense, retirados da verba do Ministério da Viação e Obras para socorro das vítimas do flagelo da seca nordestina.

Enquanto isso, no Clube Militar, em terra firme, Benjamin Constant exortava os militares a derrubar a monarquia. Há outros exemplos. Mas esses dois já nos bastam. Qualquer semelhança com as falas reformistas, espúrias barganhas ministeriais, viagens internacionais, discursos na ONU e passeios de bicicleta da nossa “presidenta” é mera coincidência.

O segundo fenômeno é o delay técnico entre a ação parlamentar em se sintonizar adequadamente com o brado retumbante das ruas, apesar de todas as evidências, hoje potencializado pelos resultados das pesquisas de opinião, pelo próprio noticiário das televisões e da intensa mobilização pela internet no Brasil.

São inúmeros os exemplos históricos, sendo o mais significativo o episódio da República de Weimar. Governava-se um país em fermentação xenófoba e nacionalista com as massas se organizando militarmente em torno das propostas de Hitler, e os parlamentares de Weimar assistiam ao filme da normalidade institucional.

Na Itália, o mesmo fenômeno é tratado de modo magistral no romance épico de Giorgio Bassani, “Il giardino dei Finzi Contini”, não menos genialmente transportado para o cinema pelo talento de Vittorio De Sica, retratando a alienação da alta burguesia italiana dos anos que antecedem imediatamente à Segunda Guerra Mundial.

Qualquer semelhança com a situação brasileira de hoje também é mera coincidência.

Parece que o Parlamento brasileiro está localizado em outro país. Não é à toa que Brasília é apelidada a “capital da lua”.

Os presidentes das duas casas, membros do maior partido da base de sustentação do governo, sob investigação policial, o segundo maior partido com dois tesoureiros, um ex-presidente encarcerados e um senador, líder do governo, preso pelo STF em flagrantes e graves delitos, que abre o jogo em bombástica delação premiada, envolvendo diretamente a “presidenta” enquanto a Polícia Federal vasculha as residências de Lula e famiglia.

A República desgovernada, a economia em frangalhos, e o Parlamento agindo como se as manifestações que colocam multidões nas ruas estivessem acontecendo na Bessarábia.

As ruas pedem probidade na representação, e a cada dia se revelam mais escândalos de roubalheira do dinheiro público nos três níveis da desacreditada representação popular.

As ruas pedem a renúncia ou o impeachment de uma presidente desmoralizada, conivente com a incúria e a inépcia, e o maior partido no Congresso fortalece sua aliança com um Executivo apodrecido, através da barganha de ministérios, dando o da Saúde (o maior orçamento ministerial e onde se dá a qualidade mais sofrível do serviço público) a um ilustre desconhecido, apenas porque pertence aos quadros de um legislativo apequenado e fisiológico em tempos de epidemia mundial de zika.

As ruas rejeitam mais impostos e, em sua primeira e patética entrevista, esse ministro picaresco declara que não irá lutar apenas pela reimplantação da CPMF, mas por dobrar sua incidência.

São os tais brioches de Maria Antonieta ou o farto menu da Ilha Fiscal para o banquete de cinco mil convidados com o dinheiro dos flagelados da seca endêmica do reinado em decadência. Ou o Doutor Guillotin redivivo amolando a lâmina de sua engenhoca mortífera.

Nelson Paes Leme

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