Dessas três fases, a mais perigosa é a intermediária. Fase na qual o grupo ou a pessoa não está onde estava, mas ainda não se encontra onde deveria estar. Rituais de sucessão como eleições periódicas — essa exigência da democracia liberal — expõem a ambiguidade dos limbos, purgatórios e viagens. Na campanha eleitoral, a dramaticidade dessa etapa intermediária da sucessão exibe o seu momento crítico.
Não é por acaso que a consagração de reis e papas é repleta de vestes, adornos e gestos de sujeição e autoridade transcendentes. Nos tempos pós-modernos, porém, coroas e espadas foram substituídas por códigos digitais, como profetizou Stanley Kubrick no filme “Dr. Fantástico”. Um automatismo que autoriza iniciar ou terminar uma guerra nuclear capaz de destruir o planeta. Essa capacidade digital é, sem dúvida, o aterrorizante símbolo que acompanha o cargo de presidente ou ditador das potências mundiais.
A eleição presidencial americana traz de volta a simbologia dos ritos de sucessão na sua fase mais delicada: o momento em que um presidente conduz uma eleição na qual ele tem partido, e o seu adversário é um ex-presidente marcado por uma selvagem agressividade verbal e um comportamento incompatível com o papel, mas que foi vítima de uma tentativa de assassinato. Culmina esse tumulto numa disputa eleitoral com uma candidata negra que desempenhou o papel de vice-presidente do atual chefe da nação, que preside essa passagem eleitoral com um alto teor de ambivalência e polarização. É um bom exemplo de evaporação das racionalidades que, afinal, são os guias de nosso modo de vida.
Os iluministas delinearam a República com poderes interdependentes e um sistema sucessório destituído da parafernália sacrossanta. Mas não se pode deixar de assinalar que, nos ritos de posse presidencial dos Estados Unidos, o eleito levanta sua mão direita para os céus e pousa a outra mão numa Bíblia (o livro sagrado dos puritanos). Ao compromisso transcendental realizado com a mão direita (a mão das preces e contratos voltada para o alto), segue a promessa de cumprir um outro livro equivalente à Bíblia — um código que é o espírito dos Estados nacionais modernos: a Constituição que governa governos.
Um antropólogo abusado perguntaria: qual é o livro mais sagrado, mais idealizado e mais removido do mundo diário e das espertezas políticas, focadas no apetite de vencer?
Tais gestos rituais reafirmam o credo liberal americano e, com ele, o conceito rousseauniano de “religião civil”. Crença ameaçada por Donald Trump.
Nos Estados Unidos existe uma arrepiadora tradição de assassinar presidentes. Na América Central e na do Sul, ainda se corre o risco dos “golpes” que dissolvem a tripartição dos Poderes e instauram furiosa repressão e um Executivo centralizado. Ao lado disso, há a competição pelo extremismo de ideologias que deteriam o segredo da felicidade. Valores transcendentes são relativizados pela força bruta do poder ou do poder como força bruta.
Em matéria de vida coletiva, precisamos de instituições perenes e de gestos praticados em nome de uma terra que foi feita por certos ideais e estilo de vida que estão inscritos nos nossos corações. É mais do que terra: é pátria.
Foi o que vi e admirei em Joe Biden. Há quem diga que o altruísmo é um mero gesto político. Sem dúvida. Mas lembro que, num estudo sobre o suicídio de 1897, Émile Durkheim chamou a atenção para os “suicídios altruístas”, realizados em nome de valores coletivos. Então, o egoísmo que caracterizaria a renúncia não seria somente uma forma de esperteza. O egoísmo do altruísmo é o cerne de nossa maravilhosa contradição humana. É ela que distingue “heróis” e “salvadores do mundo”. Esses “egoístas” que se sacrificam em nome da democracia.
Roberto DaMatta
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