terça-feira, 13 de agosto de 2019

Pai Bolsonaro e o patrimonialismo

Se República significa coisa pública, "nossa República nunca foi republicana", como já disse o historiador Murilo de Carvalho. Nossa história é marcada pelo compadrio e a apropriação do bem público por quem detém o poder. Jair Bolsonaro está aí para provar.

Eleito hasteando a bandeira da anti-corrupção, tida como inimiga número um da democracia, Jair Bolsonaro não sobreviveria a um cartaz de protesto contra seu primo-irmão em desuso, o patrimonialismo – a utilização de mecanismos públicos para atender seus interesses pessoais.


“Utilizada pela primeira vez pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) ainda em finais do século XIX, a palavra “patrimônio” deriva de “pai”, enquanto o termo em si evoca o sentido de propriedade privada”, explica a historiadora Lilia Schwarcz em seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro .

No exemplo mais recente, revelado por O Globo e ÉPOCA, pai Bolsonaro e seus três filhos políticos — o senador Flávio, o vereador Carlos e o deputado Eduardo — contrataram , em 27 anos, 22 parentes em seus gabinetes. Bolsonaro deu de ombros para a notícia: “Já botei parentes no passado, sim. Qual é o problema?”.

O problema é histórico. Em Sobre o autoritarismo brasileiro , Schwarcz cita uma frase de Frei Vicente do Salvador, “um franciscano que se tornou nosso primeiro historiador”, ainda do início do século XVII: “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular".

Schwarcz dá outros exemplos de como a prática se perpetuou ao longo da história brasileira. Em 1810, por exemplo, D. João criou a Câmara do Registro das Mercês para acalmar ânimos e organizar uma nobreza regalando títulos. No século seguinte, a chegada da urbanização tampouco consegue romper o modelo patrimonialista. Ele se transmuta no voto de cabresto e no coronelismo.

Ainda hoje, o legado do poder privado no poder público se reflete no número de congressistas com nomes oligárquicos: foram 172 políticos eleitos em 2018, entre eles os Bolsonaros. A diferença é que, apesar de serem um clã político, eles conseguiram se eleger usando justamente o discurso antissistema. É seu modo de operar: promete drenar o sistema apenas para refazê-lo, agora sob seu controle, para seus parentes, amigos e fiéis apoiadores. Se Bolsonaro fosse um governante do Brasil imperial, estaria por aí concedendo títulos nobiliárquicos a amigos e parentes. Presidente da República, não se furta em indicar o próprio filho para ser embaixador em Washington.

Quando percorreu o país em campanha bancado pela Câmara (ao custo de R$ 520 mil, pelas contas do jornalista Lúcio Vaz), quando diz que usava o dinheiro do auxílio-moradia para “comer gente”; quando contrata em seu gabinete uma filha de Fabrício Queiroz , investigado pela prática de “rachadinha” (apropriação de parte do salário dos funcionários) no gabinete de seu filho Flávio, quando leva os parentes de helicóptero para o casamento de seu outro filho, Eduardo, e quer fazê-lo embaixador, Bolsonaro reforça uma marca do patrimonialismo que é o desdém, o exercício do poder com desprezo, que ele eleva, com seu léxico político, a categoria do vulgar, do chulo.

Não é apenas desviando verba pública que se degrada ao sistema público e à política. Como conclui Lilian Schwarcz, sem vencer a prática do patrimonialismo nunca fugiremos do modelo “presidente-pai, um pater familias autoritário e severo diante daqueles que se rebelam; justo e 'próximo' para quem o segue e compartilha das suas ideias”. Ela não cita nomes. E nem precisa.

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