terça-feira, 13 de agosto de 2019

Os pastores de Trump chegam a Brasília

“Esse estudo não é sobre se Deus aceita ou não uma guerra. Ele aceita”, anuncia o pastor americano Ralph Drollinger, em um dos seus estudos bíblicos semanais, com uma voz emotiva porém pausada, calculada para que os visitantes de seu site acompanhem o raciocínio. Em seguida, explica que a frase bíblica “Bem-aventurados são os que promovem a paz porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9) diz respeito apenas a “como os fiéis devem conduzir suas vidas pessoais”. Ou seja: não vale para os governos, que podem, sim, ir à guerra.

Publicado em maio de 2018, aquele “estudo bíblico” tinha razão de ser, segundo o próprio pastor: ajudar os membros do Governo americano a refletir sobre “a ameaça de guerra com a Síria, o Irã e a Coreia do Norte” —movimentos iniciados pelo presidente americano Donald Trump. E convencê-los de que ir à guerra é abençoado pela própria Bíblia. Dias depois, Drollinger seria ainda mais explícito na sua pregação, ao pedir que “você, como servidor público, ajude a reduzir a tendência antibíblica secular em direção ao pacifismo e não intervencionismo! Isso vai levar a um crescente caos global!”.

Não foi a primeira vez nem seria a última que o fundador do ministério evangélico Capitol Ministries encontraria na Bíblia uma justificativa para as ações mais radicais do governo Trump. Afinal, o objetivo da igreja fundada por Drollinger é basicamente “converter” políticos e servidores públicos a uma visão cristã evangélica da política que se casa perfeitamente com a visão da ultradireita americana. “Sem essa orientação, é bem mais difícil chegar a políticas públicas que satisfaçam a Deus e sejam benéficas ao progresso da nação”, resume Drollinger em um dos estudos em seu site.

Enquanto o presidente americano nega os acordos sobre o aquecimento global —e questiona abertamente se ele de fato existe—, Drollinger rechaça em outro estudo bíblico que o homem possa impactar o meio ambiente. “Todos devem ficar seguros sobre a habilidade e vontade d’Ele de sustentar o ecossistema do nosso mundo”, diz, concluindo, com voz exaltada: “Que verdades gloriosas Deus nos deu! São um tapa na cara dos teóricos de moda que tentam nos assustar com o aquecimento global”.

E se alguém questiona se a maior promessa de Trump —construir um muro na fronteira com o México para evitar a entrada de imigrantes e refugiados— pode conviver com o princípio cristão da compaixão, ele tem a resposta pronta: “Compreende-se do Gênesis 11 que as nações, pelos desígnios de Deus, devem ter diferentes línguas, culturas, e fronteiras”, raciocina. “As leis imigratórias de cada nação devem ser baseadas na Bíblia e estritamente aplicadas— com a absoluta confiança e a garantia de que Deus aprova tais ações.” Quem garante é o pastor.


A Capitol Ministries —nome que significa “Ministério do Capitólio”, símbolo do Congresso americano— foi fundada pelo ex-jogador de basquete Ralph Drollinger na Califórnia, em 1996, para “criar discípulos de Jesus Cristo na arena política pelo mundo todo”. A ideia do pastor era levar para a política seu trabalho anterior, focado em evangelizar atletas.

Até o ano 2010, seu público eram deputados estaduais; naquele ano, o primeiro ciclo de estudos foi fundado em Washington, no Congresso americano. Mas foi em 2017 que Drollinger deu seu salto para o primeiro plano da política mundial, quando fundou o primeiro grupo de estudos dedicado apenas a membros do Governo de Donald Trump. O encontro semanal, em um local não revelado, reúne dez membros do alto escalão do Governo, incluindo o vice-presidente, Mike Pence, e o secretário de Estado, Mike Pompeo, que dirige a política externa. O ex-diretor da Agência de Proteção Ambiental Scott Pruitt, que articulou a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris, sobre aquecimento global, e já questionou o efeito de emissões de carbono sobre o clima, também chegou a participar.

Muito além de um simples falatório, as pregações de Drollinger têm efeito prático em um Governo que mais de uma vez reconheceu ter sido eleito graças ao voto evangélico. Em junho do ano passado, um de seus sermões foi usado pelo ex-procurador-geral Jeff Sessions para apaziguar os corações dos eleitores quanto à detenção de milhares de crianças imigrantes em péssimas condições na fronteira com o México. “Eu citaria a vocês o apóstolo Paulo e seu comando claro e sábio em Romanos 13, para obedecer às leis do Governo porque Deus ordenou o Governo para seus desígnios”, disse Sessions, invocando a Bíblia, e não a legislação americana, como justificativa. Enquanto a imprensa americana reagia chocada, Drollinger fez questão de expor suas digitais por trás da declaração.

“Eu tive a distinta honra de ensinar a ele sobre esse assunto e muitos outros”, disse. “Não há nada mais animador, quando você é um professor da Bíblia, do que ver um dos caras com quem você está trabalhando articulando algumas coisa que você ensinou.” A frase, de fato, é uma repetição do manual básico de Drollinger, e Sessions, quando estava no Governo, realmente frequentava seus estudos bíblicos.

Separar pais dos seus filhos seria aprovado pela palavra de Deus, diz o pastor. “Quando alguém viola a lei de um país, deve antecipar que uma das consequências do seu comportamento ilegal será a separação dos seus filhos. É esse o caso de ladrões ou assassinos que são presos”, justifica.
Em busca de Bolsonaro, Capitol chega ao Brasil

Financiada pelo vice-presidente Mike Pence e pelo secretário de Estado Mike Pompeo, segundo afirmou o próprio Drollinger em seu site, a Capitol Ministries também se vale da influência do Governo americano para cumprir sua missão, entre aspas, divina: dominar o mundo. Desde o ano passado, abriu capítulos em cinco países latino-americanos —México, Honduras, Paraguai, Costa Rica e Uruguai—, anunciou que abrirá em outros dois —Nicarágua e Panamá— e acaba de aportar no Brasil, com lançamento oficial programado para a segunda quinzena de agosto no Senado Federal, “sem muita badalação, voltado apenas para autoridades” e “com a presença de Drollinger e sua esposa”, como explicou à Pública o pastor da Igreja Batista Vida Nova, Raul José Ferreira Jr., que será o responsável por conduzir os estudos bíblicos no Senado, na Câmara.

Ele diz ainda que, “se Deus permitir”, vai conduzir também estudos bíblicos na Casa Civil junto ao presidente Jair Bolsonaro e seus ministros, traduzindo as palavras do pastor americano para o presidente brasileiro. “Nós estamos realmente trabalhando firme para que possa haver ao menos um encontro do pastor Drollinger com o presidente Bolsonaro agora em agosto, para que a partir daí a gente possa desenvolver um trabalho. Mas, mesmo que o presidente não esteja entre eles, nós vamos tentar construir um trabalho dentro da Casa Civil, junto dos ministros diretamente ligados ao palácio”, diz.

O objetivo dos estudos bíblicos, que são traduzidos para o espanhol e em breve para o português, é disseminar a visão de Drollinger sobre o cristianismo aplicado à política. “Nossa ideia é chegar a nível de Presidência da República e ministros, primeiro escalão. A gente tem um slogan que é ‘first the firsts’, ou seja, primeiro os primeiros. Através dessas pessoas com relevância a gente pode mudar o destino da nossa nação”, diz o pastor Ferreira Jr., que, indicado pelo diretor regional no Brasil, pastor Giovaldo de Freitas, passou por uma semana de treinamento em Seattle com Ralph Drollinger e sua equipe.

As aspirações da Capitol Ministries no Brasil são ambiciosas, embora o pastor Ferreira Jr. chame de “trabalho de formiguinha”: conduzir, a portas fechadas nos gabinetes, reuniões bíblicas individuais com parlamentares, especialmente os não convertidos, além de reuniões coletivas semanais —e ainda garantir que cada parlamentar do Congresso Nacional receba os estudos impressos, por e-mail e por mensagem no celular. “Nosso objetivo é reconstruir a nação a partir de valores cristãos que são forjados através do estudo da palavra”, define o pastor.

Para tanto, ele diz que o ministério de Drollinger já conta com o apoio de alguns parlamentares que são membros atuantes da Frente Parlamentar Evangélica, como o senador e pastor Zequinha Marinho (PSC-PA), o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) e o deputado e também pastor Roberto de Lucena (Podemos-SP).


As negociações para a chegada da Capitol Ministries ao Brasil começaram ainda no Governo Temer, em 2017, como explicou à Pública o diretor do ministério no Brasil e pastor da Igreja Batista de Moema, Giovaldo Freitas, em seu escritório em São Paulo. Naquele ano, Giovaldo era parte do Global Leadership Summit, uma organização evangélica americana que realiza grandes eventos de capacitação para lideranças empresariais no mundo todo. Em um dos eventos do grupo em Chicago, o pastor foi convidado pelo hoje coordenador da Capitol Ministries na América Latina, o peruano Oscar Zamora, a participar de um almoço que acertaria os detalhes da vinda do ministério para o Brasil.

Giovaldo passou então pelo treinamento de Drollinger em Washington com pessoas do mundo todo: “Tinha várias pessoas da América Latina, alguns do Caribe, da Europa, gente da Ásia... Gente da Argentina, Paraguai, Uruguai, Equador, Colômbia, Bermudas, Bahamas, Guatemala, Honduras, Costa Rica, México, Holanda, Romênia, Rússia...”, lembra. E acrescenta: “Foi muito interessante porque de repente eu me vejo ali conversando com um senador americano superempolgado porque estava vindo para o Brasil. Nessa reunião tinha oito senadores e dois deputados [americanos]”. O pastor não quis revelar os nomes dos políticos americanos presentes, mas disse que também houve, na ocasião, um painel com a presença de três secretários de Trump: a secretária de Educação, Betsy DeVos, o secretário de Energia, Rick Perry. e o da Agricultura, Sonny Perdue.

Segundo ele, os laços religiosos têm dado frutos políticos: “Inclusive, esse secretário de Energia tem mantido conversa com nosso ministro de Minas e Energia exatamente por causa da chegada da Capitol Ministries”, revela.

Desde então, o pastor descreve que várias negociações aconteceram no Congresso brasileiro, além de reuniões com embaixadores do Itamaraty e com o chefe de gabinete de Temer, em maio de 2018, “para decidir algumas coisas” sobre o lançamento no Brasil, segundo Giovaldo. Questionado pela reportagem, ele não quis entrar em detalhes. A Pública encontrou registros de uma reunião com o então ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Ronaldo Fonseca, em julho do ano passado, na qual estavam Giovaldo e outro ex-membro da Capitol Ministries, o pastor Evandro Beserra.

Embora diga que a intenção do ministério não é “levantar bandeiras”, o pastor admite que existe uma aproximação natural com os partidos mais à direita. O novo Governo é, para ele, o cenário ideal para a chegada: “Na primeira semana de abril, nos reunimos com o Onyx Lorenzoni [ministro-chefe da Casa Civil], que foi muito receptivo, evangélico do Rio Grande do Sul, foi um tempo muito gostoso. O presidente Bolsonaro estava em Israel, então não pudemos ter contato, mas fomos muito bem recebidos”, comentou.

Segundo a professora de direito e diretora do Centro Jurídico sobre Gênero e Sexualidade na Universidade de Columbia, Katherine Franke, a exportação de missões fundamentalistas dos EUA para a América Latina, com a bênção do Governo federal, viola os princípios de separação de Estado e Igreja determinada pela Constituição dos Estados Unidos. “O Governo está promovendo a religião como um projeto oficial do Governo e isso claramente viola uma das cláusulas. Mais ainda, o Governo está promovendo uma visão particular da religião, sem fazê-lo imparcialmente. E esse é um segundo tipo de violação ”, disse a especialista à coalizão de veículos que faz parte do projeto “Transnacionais da Fé”, que publica esta reportagem.

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