Na semana passada, uma eleição presidencial que deveria ter como marca a volta da democracia ao Zimbábue terminou em confusão quando contas falsas no Twitter, no Facebook e no WhatsApp disseminaram resultados contraditórios. O país inteiro chegou a presenciar comemorações espontâneas pela vitória dos dois candidatos, o que resultou em confrontos violentos. Em um clima geral de desconfiança, até observadores internacionais não sabiam onde obter informações confiáveis. Toda essa situação permite prever que o próximo governo enfrentará uma crise de legitimidade desde seu primeiro dia.
Na Índia, o governo empreende verdadeira batalha contra uma onda de linchamentos depois que rumores falsos viralizaram no WhatsApp sobre supostos sequestradores de crianças. Nacionalistas interessados em atiçar o ódio religioso usam a plataforma para aprofundar a polarização, que também tem resultado em linchamentos. Em resposta, o WhatsApp limitou a 20 pessoas por vez, o número de contatos para os quais cada usuário pode encaminhar mensagens, buscando, assim, atrasar a viralização das notícias. A medida é mero paliativo, uma vez que as pessoas tenderão a buscar outros aplicativos sem essa limitação.
Nos Estados Unidos, em vista das eleições legislativas de novembro, o Facebook tem se esforçado para reagir a um amplo ataque de fake news. Estima-se que 40% dos eleitores dos EUA foram expostos a notícias falsas durante a eleição presidencial de 2016. Em uma reviravolta inesperada, agora elas se voltam contra o presidente Donald Trump. O objetivo dos propagadores de fake news, muitos dos quais vivem na Rússia, não é apoiar um candidato ou outro, mas gerar confusão generalizada, polarização e desconfiança na própria democracia. Assim como muitos democratas questionam a legitimidade do presidente, muitos republicanos poderão vir a questionar a legitimidade do Congresso dos EUA - que, agravando ainda a mais a situação, poderia dar início a um processo de impeachment contra Trump. Nunca antes a democracia dos EUA enfrentou ameaça tão séria.
Na Grã-Bretanha, 52% dos eleitores votaram por deixar a União Europeia em 2016, atraídos por uma enxurrada de informações falsas disseminadas por nacionalistas oportunistas. Em uma pesquisa recente, uma porcentagem semelhante dos britânicos disse acreditar que os desembarques na Lua de 1969 a 1972 eram falsos. A triste ironia é que, pela primeira vez na história, a maioria dos cidadãos pode carregar no bolso todo o conhecimento do mundo, mas, ao mesmo tempo, nunca esteve tão vulnerável a informações falsas.
Engana-se quem pensa que algumas mudanças nas leis e ajustes técnicos podem resolver a situação e permitir que tudo volte a ser como antes. A humanidade testemunha os primeiros momentos de uma nova era em que todo o relacionamento com a informação - e a realidade como um todo - mudará de maneira hoje inimaginável. A democracia, tal como se concebe hoje, dificilmente sobreviverá a essa transformação.
Basta considerar duas grandes tendências. A primeira: apenas cerca de 50% da população mundial tem acesso à internet hoje. Nos próximos anos, a outra metade, potencialmente ainda mais vulnerável a notícias falsas, também poderá participar do debate online. Por exemplo, muitos aplicativos populares no mundo em desenvolvimento concentram-se apenas em mensagens de voz, já que parcela considerável de seus usuários não sabe ler nem escrever, dificultando ainda mais a identificação de informações falsas.
A segunda: o desenvolvimento de ferramentas baseadas em inteligência artificial, capazes de manipular ou fabricar vídeos, arquivos de áudio e fotos falsas - as chamadas deep fakes - ampliará consideravelmente a dificuldade de separar fato de ficção, o que fará as fake news de hoje parecerem brincadeira de criança.
Daqui a alguns anos, um smartphone será suficiente para simular uma sequência de notícias, como as da CNN, por exemplo, na qual a perfeita imitação da voz de um apresentador famoso reportaria um golpe militar em Washington ou um anúncio da Casa Branca sobre uma guerra iminente, sem meio técnico para confirmar ou negar sua veracidade. Em uma futura eleição presidencial no Brasil, não será mais necessário atacar os concorrentes - pode-se simplesmente produzir um vídeo em que o rival promete que, se eleito, encerrar o programa Bolsa Família, eliminar a propriedade privada ou qualquer absurdo que o faça perder apoio. Confusos e desconfiados, os cidadãos se refugiarão ainda mais em suas bolhas aparentemente seguras, isolados em relação a qualquer tipo de debate público.
Heather Bryant, jornalista afiliada à Universidade Stanford, escreveu recentemente que jornalistas, mesmo nos melhores jornais do mundo, estão totalmente despreparados para distinguir fato de ficção ao analisar deep fakes. Para complicar ainda mais a situação, há evidências crescentes de que internautas parecem realmente preferir notícias falsas: em um estudo recente de Soroush Vosoughi, um pesquisador do MIT, conclui que as informações falsas têm 70% mais chances de serem retuitadas do que notícias verdadeiras.
O impacto na política externa será igualmente expressivo. O interminável ciclo de notícias falsas e a rápida disseminação de opiniões extremas (ou, por exemplo, falsos vídeos de atrocidades cometidas por outro país) reduzirão o espaço de negociações tranquilas para se chegar a compromissos aceitáveis para todos os envolvidos. Em 1945, delegados de 50 países se reuniram em São Francisco para desenhar a ordem global pós-Guerra. Foram oito semanas de negociação, com poucas interrupções. Hoje, o mesmo seria praticamente impossível. A necessidade de adotar posições em minutos, instantaneamente acessíveis em todo o mundo, afeta a capacidade da diplomacia de reduzir o risco de conflitos.
O debate sobre como salvar a democracia acabou de começar. Não existem soluções fáceis, e há anos de tentativas e erros dolorosos adiante - como testemunhado hoje no Zimbábue, na Índia, nos Estados Unidos, no Reino Unido e em tantos outros países. O único erro que não se pode cometer é fingir ser possível, de alguma forma, voltar aos velhos tempos.
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