A comoção internacional despertada pelo inesperado, grave e prolongado comprometimento do sistema nervoso de recém-nascidos não poderia ser idêntica àquela consequente às noticias locais sobre procedimentos médicos inseguros em idosos.
Mas, as instituições de saúde, os recursos existentes para prevenir, diagnosticar e tratar tanto casos inesperados exigentes de atendimento especializado, quanto os danos provocados pela obtenção de má assistência, não variam tanto, situam-se no mesmo Brasil. É muito complicado, mesmo.
Usar dados e informações para tomar decisões é sempre bom conselho, evita a tentação de omitir as incertezas e as apostas em soluções exclusivamente voltadas à derrota do suposto inimigo/obstáculo de cada momento.
Segundo o conhecimento disponível, o Aedes não será eliminado no Brasil e em diversos países durante este verão e possivelmente ainda estará por aí nos próximos. As condições do passado — um mundo com menor fluxo de pessoas entre nações e continentes, cidades menores, inexistência de embalagens de plástico, latas, uso abundante de inseticidas — não são reprodutíveis e aceitáveis no presente.
No entanto, há muito o que fazer. Precisamos proteger efetivamente as gestantes, estimular e desenvolver pesquisas básicas e reunir especialistas para desenvolver vacinas, testes diagnósticos, tratamentos e estratégias de vigilância, identificação de casos e implementação de controle vetorial.
As evidências também sugerem a necessidade de monitoramento permanente da segurança das práticas de saúde, transparência e regras para as relações entre os profissionais de saúde e indústrias de medicamentos e dispositivos como órteses e próteses.
Entidades médicas, instituições públicas e privadas de saúde e todos os órgãos públicos de controle devem ser mobilizados para conter a epidemia silenciosa de má qualidade assistencial.
Não se espanta o Aedes com palavras de ordem. Dizer que um mosquito não é mais forte do que um país inteiro, misturando na mesma frase biologia e política pode infundir ânimo, mas não orienta as atuais gestantes nem responde à pergunta sobre quando as brasileiras poderão engravidar sem temer os riscos de má-formação consequentes à zika.
Similarmente, não dialoga com atletas e comitês esportivos sobre as medidas para a redução da transmissão durante as Olimpíadas.
A adoção de um lema centrado no combate restringe a divulgação de informações essenciais sobre o uso de roupas, a distribuição de repelentes e mosquiteiros e o acionamento de regras para a licença ou suporte de ambientes de trabalho salutares nas primeiras semanas de gestação.
E a predisposição à guerra contra o mosquito se mostra imprópria ao estabelecimento de termos adequados para o debate de temas incômodos e polêmicos, porém inadiáveis, como o saneamento e a descriminalização do aborto.
O amparo para mães e famílias de bebês com microcefalia, bem como o diagnóstico precoce e a decisão sobre interrupção da gravidez, constitui direito reprodutivo que deveria ser assegurado a todas as brasileiras.
Em relação aos problemas ocasionados nos serviços de saúde, numerosos estudos procuram mensurar e avaliar o papel dos médicos. Não existem sistemas de saúde sem médicos, considerá-los adversários, estorvos, é meio caminho para conflagrar uma batalha injusta, porque quem a inicia não os hostiliza, antes pelo contrário, os consulta e cultiva como amigos queridos.
Contudo, fechar os olhos às barbaridades do modelo remuneração-procedimento é uma estrada sem volta, rumo à inviabilização da organização de uma rede assistencial segura.
A presunção de que os médicos não dispõem de nenhum arbítrio, como se fosse obrigatório receber incentivos pela utilização de produtos industriais, intimida as críticas e estimula a omissão diante de práticas deturpadas.
Os próprios profissionais de saúde relatam que, após assentir com a realização de um procedimento ortopédico, um paciente perguntou quanto seria sua parte.
A contaminação dos olhos e perda de globo ocular de pacientes do SUS operados em um hospital do sistema em janeiro por oftalmologista de empresa terceirizada revela o drama do casamento de pacotes cirúrgicos e ausência de responsabilidade pelos atos médicos. No ano passado, uma clínica oftalmológica privada no Rio Grande do Sul foi processada por motivo idêntico.
A síntese de Mario de Andrade — “Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são!” — ajuda a desfazer confusões sobre doenças, classes sociais e a errônea impressão de que as áreas de circulação dos segmentos mais ricos são limpas, descontaminadas, livres da mesquinharias de profissionais de saúde desqualificados.
Ações ditadas por arroubos heroicos ou excesso de pessimismo em relação aos novos vírus e pagamento segundo procedimento podem ser substituídas pelo cálculo sobre investimentos para melhorar objetivamente a saúde.
A priorização da pesquisa estratégica, produção de testes diagnósticos, avanços na garantia de direitos reprodutivos bem como a revisão dos processos de formação e inserção no mercado de trabalho de generalistas e especialistas, e recuperação dos hospitais universitários públicos são essenciais para evitar que problemas de saúde nos custem os olhos da cara.
Zika e os problemas de qualidade dos serviços de saúde, incluindo os privados, não compartilham a mesma trama causal, mas requerem o trabalho conjunto de médicos, pesquisadores, enfermeiros, psicólogos, de instituições públicas competentes e participação efetiva de entidades da sociedade civil.
O Brasil tem potencial, possui todos esses componentes, ainda que incipientes e dispersos e pode fortalecer sua base científica e tecnológica mediante a integração aos esforços globais para o controle de epidemias e a construção de sistemas de saúde universais.
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