Pois se a consciência, como mostraram Marx, Weber, Durkheim e, sobretudo, Freud, é o que nos torna entidades morais — com o dever inexorável de pensar duas ou mais vezes contra e a favor de nós mesmos — , nada é mais premente do que tentar conjugar o histórico com o eventual. A conjuntura não abole a estrutura; antes, pelo contrário (veja-se Marshall Sahlins), elas são interdependentes. Sistemas fundados no servilismo, na escravidão e no ressentimento coletivo reprimido suscitam a ilusão das soluções derradeiras, de regimes definitivos.
Ganha um fim de semana em Manhattan (com direito a pandemia e a tomar parte nos protestos contra a segregação racial) quem me indicar um comentário político que não seja sociológico.
2. Por causa disso, reitero a pergunta que não pode calar: o que trouxe ao centro no cenário político brasileiro o capitão Bolsonaro e filhos? Eles — toscos e rudes — surgiram do nada ou foram feitos protagonistas porque a peça a que se assistia era desmoralizadora e dava cabo do próprio teatro, hoje — paradoxalmente — não menos ameaçado também por meio um agente externo sem intenção política: a pandemia.
3. Invoco o Rousseau do “Contrato social”: “Antes de examinar o ato pelo qual um povo se entrega a um rei, será melhor examinar o ato que o torna povo. Este ato é a verdadeira fundação da sociedade.”
Convenhamos que isso não é impossível, mas é difícil numa sociedade fundada de fora para dentro, debaixo de um autoritário e burocrático colonialismo radicalmente católico e anti-igualitário. Um sistema consolidado pela fuga, em 1808, da Corte portuguesa diante do avassalador surto democrático napoleônico. Um Brasil movido por laços de puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro.
4. Fomos reino, império, república logo alterada como ditadura civil e militar. Pagamos, penamos e conseguimos a democratização. Hoje somos um Estado nacional que se quer moderno, próspero e democrático. Fizemos a nossa independência de Portugal ou foi o contrário? Mais: quando é que, como diz Octavio Paz focando o México e a América Espanhola, vamos nos tornar independentes e a favor de nós mesmos? Quando vamos enfrentar a nossa ambiguidade institucional e o protagonismo político do nosso familismo?
5. O mandonismo absolutista, irritante e errático de Jair Bolsonaro é revelador. Mostra uma total incompreensão do seu papel de — usemos um epíteto antigo — “supremo mandatário da nação”. O que vi no famoso vídeo foi como um líder influencia seus seguidores. Uns, é claro, mais do que outros. Mas ali, é óbvia a coerção a arremedar o líder, copiando o seu comportamento mal-educado e o seu vocabulário escabroso. Pois não há quem não deseje um líder capaz de desafiar o bom senso, por mais que isso seja uma infantilização e conduza ao desastre como, vale lembrar, foi o caso de uma Alemanha “altamente civilizada e ariana” na sua paixão por Hitler e pelo seu nacional-socialismo germânico.
6. Quando usamos de modo imperativo categorias constitutivas do regime democrático como liberdade, igualdade e justiça, corremos o risco de praticar terrorismo ideológico porque — dependendo do contexto — surge o silêncio. Quem seria contra a liberdade sem ser suspeito de fascismo? E, no entanto, ser privado de escolha ou do debate é estar na prisão do fascismo que — basta olhar para a história — é de direita e lamentavelmente também de esquerda.
Essa democracia que sempre e em todo lugar produz tantas crises deve ser a todo custo defendida. Justamente por isso, não pode deixar de ser pensada.
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