segunda-feira, 1 de julho de 2024

Estamos a perder a batalha das ideias

As eleições francesas são um ponto de viragem há anos anunciado: a extrema-direita deixa de provocar medo e passa até a suscitar esperança em muitos cidadãos. É desagradável mas é uma realidade. A extrema-direita está ainda longe de dominar a Europa mas está a ganhar a batalha das ideias. É neste plano, e não no do medo, que liberais e sociais-democratas deverão afrontar o combate contra as novas ameaças da extrema-direita.


Começo por alguns números recentes. Um grande inquérito do instituto Ipsos para vários meios de informação, revela o estado de espírito dos franceses na véspera do voto. Num resumo do seu director-geral, Brice Teinturier, publicado no Le Monde, a dissolução do parlamento por Emmanuel Macron suscitou reações diametralmente opostas entre os eleitores. Provocou em quase todas as áreas políticas sentimentos negativos. A excepção são os eleitores da União Nacional (RN, de Marine Le Pen): 65% deles receberam a notícia com otimismo e esperança.

O grande sinal é que o voto em Le Pen, que foi durante décadas um voto de protesto, se transformou desde há anos num “voto de adesão”. Aquela “dinâmica de esperança”, escreve Teinturier, decorre do desejo de alternância: 93% dos seus virtuais eleitores e aliados confiam na vitória da lista de Jordan Bardella, deputado e porta-voz do RN. E, dentre eles, 50% creem na maioria absoluta. Note-se, ainda, que 40% dos franceses desejam a vitória da RN, contra 31% que gostariam de ver a Nova Frente Popular (NFP) ganhar e 29% que apostam no bloco centrista de Macron.

Esta não é uma sondagem das intenções de voto. Estas são ligeiramente diferentes: 36% para a RN e aliados de direita, 29 para a Nova Frente Popular (NFP, esquerda e extremaesquerda), 19,5 para a aliança pró-Macron, e oito para os Republicanos (LR, direita tradicional). As muito incertas previsões de mandatos, após a crítica segunda volta, apontam para uma maioria relativa dos lepenistas, mas não absoluta. Este é um assunto para a próxima semana.

Os eleitores da RN não se preocupam com a “credibilidade económica” do seu programa, que a maioria dos economistas considera desastroso. Pelo contrário, é aceite como “desejável e realista” por 45% dos franceses. Mais do que a credibilidade, o eleitorado de Le Pen procura “proteção”.

O que aqui me interessa é a viragem em curso e que poderíamos resumir assim: em vez de medo, Le Pen passou a inspirar esperança junto de grandes frações do eleitorado. É hoje primeira força entre os jovens (se eles votarem) e acaba de conquistar a hegemonia no eleitorado idoso, que durante muito tempo lhe resistiu mas que se tornou cada vez mais sensível aos fantasmas da imigração.

A extrema-direita conseguiu “banalizar-se”, passando a ser encarada como um partido “como os outros”. Marine Le Pen venceu a guerra da “desdiabolização”. O que significa que a esquerda e a direita liberal deverão mudar a forma de a combater. Não bastam os slogans tipo “não passarão” ou as denúncias de racismo e anti-semitismo, que se revelam cada vez mais desajustadas.

Há anos que está em curso uma viragem à direita em quase toda a Europa. E, neste processo, a extrema-direita tornou-se a força mais dinâmica, que passou a arrastar a direita moderada que, por razões eleitorais, se foi identificando com os seus temas. Um dos aspectos mais impressionantes foi o modo como a direita radical soube desencadear uma ofensiva contra a ecologia. Foi esta mesma direita radical que persuadiu os “moderados” do Partido Popular Europeu (PPE) e a presidente Ursula von der Leyen a meter na gaveta a grande bandeira da Comissão Europeia, o célebre “Green Deal. O mesmo aconteceu com a subversão da política europeia de imigração.

Os resultados eleitorais têm sido o sinal de alarme. Mas tanto a esquerda como os liberais demoraram demasiado tempo a compreender o carácter estratégico, e não apenas conjuntural, da viragem à direita. Resume o jornalista alemão Wolfgang Münchau: “Ainda que a extrema-direita não esteja a governar a Europa, ela está a vencer a batalha das ideias sobre imigração, identidade, crime, políticas verdes e economia.”

Há um outro fenômeno que ilustra a mudança de época. Em França, é cada vez mais forte a ofensiva de direita no terreno dos media. Nos últimos tempos, tem sido particularmente notória a radicalização promovida pelo conglomerado mediático de Vincent Bolloré (grupo Vivendi, que detém canais de televisão como o CNews ou o Canal+), que apadrinha a aliança entre direita e extrema-direita. Impôs uma linha editorial semelhante à das televisões e tablóides de Rupert Murdoch.

No entanto, o fenómeno é mais largo do que a manipulação política e contamina os media independentes. “Os media foram invadidos pelos temas da extrema-direita. Telejornais, rádios e jornais descrevem regularmente uma França que coincide com a visão da União Nacional”, escreve o Le Monde na edição de hoje.

O novo clima político e ideológico exigirá um grande realismo na reação perante os resultados eleitorais. Mesmo no caso de uma maioria absoluta, Bardella não se lançará numa campanha desenfreada contra os valores da República ou contra a União Europeia. Será prudente, porque a meta da União Nacional é a eleição de Marine Le Pen nas presidenciais de 2027. Ela sonha com o Eliseu e, diz ao Le Monde que, de momento, o que a preocupa é “cuidar da sua estatura presidencial”. No caso de maioria relativa, dificilmente Bardella aceitará a responsabilidade de um governo débil. É possível uma fase de caos parlamentar.

Em vez da bandeira do medo, pede-se às forças democráticas que convençam os eleitores afrontando os grandes temas de que a extrema-direita se apoderou. Repetindo Münchau: a batalha das ideias sobre imigração, identidade, crime, políticas verdes e economia.
Jorge Almeida Fernandes

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