—Eu sou espiritualizada, [o Dom], mais reservado, me dizia: “Alê, para mim Deus é a natureza” — contou, tomando fôlego.
Quem a ouviu murmurar frase tão absoluta entendeu tudo. Entendeu sobretudo o motivo oculto de a frase seguinte começar no condicional e prosseguir com o verbo no pretérito:
—Se ele partiu ali [naquela imensidão amazônica], foi no meio do Deus no qual acreditava.
Foi quase um réquiem — belo, profundo, (e)terno. Vale para dois seres humanos raros. Ao contrário das outras criaturas que habitam a Terra, desaprendemos a andar por ela com a leveza e o cuidado de um Dom Phillips e um Bruno Pereira.
Phillips, como o mundo inteiro agora sabe, fez do compromisso com a selva brasileira e da proteção aos povos indígenas uma razão de vida. Anos a fio, de caneta na mão e caderno de repórter sobre os joelhos, ouvia e escrevia, ouvia e fazia amigos, ouvia e anotava. Conquistou respeito e admiração por seu jornalismo rigoroso em região coalhada de predadores humanos. Bruno Araújo Pereira, por seu lado, tido como o maior indigenista em atividade no Brasil e há décadas referência internacional sobre nossos povos indígenas, deveria ser motivo de orgulho irrestrito por parte da Fundação Nacional do Índio, certo? Errado. Não para a Funai desossada com fúria pelo desmatador em chefe Jair Bolsonaro. Apesar de Pereira ser o servidor público de maior prestígio da Funai, a primeiríssima manifestação sobre o desaparecimento do indigenista por parte do presidente da entidade, delegado da PM Marcelo Xavier, foi frisar que Pereira estava afastado do órgão. Sim, estava de licença não remunerada, trabalhando com a paixão de sempre para a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) —havia sido ejetado de importante função na Funai na esteira da “porteira aberta” ao ilícito, implantada como política no Ministério do Meio Ambiente de Ricardo Salles.
A realidade amazônica sempre foi crua — pelo isolamento, pela geografia inóspita, pelas riquezas cobiçadas e pela bandidagem à solta. Segundo dados do coletivo jornalístico Tierra de Resistentes, 139 ativistas dedicados à defesa ambiental da região foram assassinados entre 2009 e 2020 —pequena parte visível na imensidão submersa de criminalidade, ausência deliberada do Estado, falência gritante das Forças Armadas, abandono do território nacional e de sua gente à própria sorte.
É possível que a ruidosa pressão internacional — uma das maiores sofridas por um governo brasileiro desde os tempos da ditadura militar —, somada à repentinamente intensa cobrança das instituições nacionais, traga respostas confiáveis ao clamor geral. Se assim for, a crônica do que terá acontecido na manhã do domingo dia 5 — quando Bruno e Dom navegavam pelo Rio Itaquaí sem nunca chegar ao destino — pode servir de retrato deste triste Brasil à deriva em 2022. Tudo cheira horrendamente mal nesta causa que entrementes se tornou célebre. Para a escritora Ursula K. Le Guin, uma das grandes dádivas da vida é conhecer o abismo da escuridão para deixar de temê-la. Pode ser. Também não são poucos os que proclamam ser a noite mais verdadeira que o dia. A esperança mais urgente é haver claridade e verdade — até porque, se isso ocorrer, não é de descartar a escavação em série da podridão política atual.
Se nossas origens estão na terra, na terra também está nossa humanidade.
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