quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

O ‘povo’ e as avestruzes

A Constituição da República Federativa do Brasil diz, no parágrafo único do seu Artigo Primeiro: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 

A Constituição está certa. Todo o poder emana do povo. Todo o poder emana das decisões do povo. Das suas escolhas, e dos indivíduos que elege. Está lá: “representantes eleitos”. 

Reparem —“representantes”. 

Nenhum parlamentar veio do espaço. Nenhum prefeito, nenhuma autoridade, nenhum vereador. Ninguém brotou no ar por geração espontânea. São todos frutos da mesma terra e, quer se queira, quer não, todos são gente nossa. 

Todos são, sem exceção — como você e eu — povo brasileiro. 

Povo é o desembargador sem máscara que dá carteirada no guarda municipal, o guarda municipal e o anônimo que registra a cena. 

Povo é um coletivo que nos inclui, não uma abstração filosófica para justificar teorias político-sociais a respeito do comportamento alheio. 

Todo país tem o governo que merece. 


Nós somos exatamente isso, esse Centrão amorfo, imoral, ávido pelas suas boquinhas. É um espelho horrível, que evitamos olhar: “Ah, não me interesso por política, não gosto”. Mas não adianta desviar o olhar, ou buscar a ilusão de que “povo” é uma entidade que fica lá longe (ou do outro lado).

A realidade não deixa de existir quando a avestruz enterra a cabeça na areia. 

(Na verdade, a avestruz não enterra a cabeça na areia. Avestruz faz ninho no chão e confere com frequência como estão os ovos, o que deu aos seus primeiros observadores ocidentais a falsa impressão de que enterrava a cabeça para fugir do perigo.) 

***

Houve momentos, ao longo do mandato de Rodrigo Maia à frente da Câmara — no final do Temer pós-Joesley, no começo do Jair pré- Queiroz —, em que ele pareceu ser maior do que era: uma figura sensata, uma espécie de primeiro ministro, o adulto da casa. 

Infelizmente, Maia falhou no que poderia ter sido o seu principal papel. Teve mais de 60 pedidos de impeachment para deter um presidente criminoso, mas tropeçou na mesma covardia do velho PSDB, que começou a sua marcha rumo ao pântano (e à irrelevância) quando não teve coragem de confrontar a popularidade de Lula no tempo do mensalão. 

A ideia de que um político pode fazer o que quiser desde que seja popular é um dos grandes alicerces da imoralidade da vida pública brasileira. É exaustivo perceber que todos são iguais perante a lei, mas os de sempre continuam sendo mais iguais do que os outros. 

Rodrigo Maia teve várias oportunidades de combater o bom combate; não esteve, porém, à altura do que se esperava dele. 

Ou, vamos ser sinceros: do que não se esperava. 

***

Bia Kicis na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados faz tanto sentido quanto Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente, ou Ernesto Araújo no Ministério das Relações Exteriores. 

Parece deboche — e vai ver é mesmo. 
Cora Rónai

Nenhum comentário:

Postar um comentário