terça-feira, 24 de março de 2020

O SNS nosso de cada dia nos dai hoje

Dia 10.

Tenho acompanhado de perto a evolução do Covid-19 nos Estados Unidos. Estão ali reunidas todas as condições para uma tragédia histórica: um sistema saúde que assenta em seguros privados e deixa de fora a fatia da população mais pobre, um sistema federal com muitos intervenientes ao nível estadual, e um Presidente profundamente ignorante e descrente na ciência, mais preocupado com a sua própria imagem, a economia e a reeleição do que em combater a ameaça para a nação que durante semanas negligenciou. (Vai ficar tristemente para a história a vil explicação que deu perante as câmaras para não querer deixar atracar o barco de cruzeiro em São Francisco: não lhe estragar os números)
34th St, Nova Iorque 
A Terra das Oportunidades do Tio Sam é, note-se, o país onde o Estado manda as pessoas morrer longe. Ali, há mães que só podem levar os filhos bebés ao médico depois de estarem com eles doentes em casa semanas a fio, entregues a mezinhas medievais. Muitos morrem porque chegam aos hospitais tarde demais. Há doentes terminais a agonizar com dores em casa, sem quaisquer cuidados paliativos, demasiado caros para algumas famílias poderem suportar. Há famílias a rezar para que o azar não lhes bata à porta e ninguém seja apanhado por um cancro ou doença crónica, um acidente de viação, um problema de saúde grave, porque simplesmente não vão ter dinheiro para o pagar a sua sobrevivência.
Duas capas icónicas que retratam o controlo, ou a falta dele, da Covid-19 nos Estados Unidos

Nada me espanta que seja, agora, um dos focos de maior crescimento no mundo: no último dia registaram mais 7309 casos, e estão hoje em mais de 40 mil pessoas contaminadas. Dentro de uma semana, provavelmente passarão a China e ultrapassarão os 80 mil casos. Os EUA de Trump acordaram demasiado tarde para a pandemia que contamina o mundo, e deparam-se agora com o maior dos obstáculos: um sistema de saúde público demasiado liberal, que é como quem diz, praticamente inexistente. Exatamente aquilo que não queremos para Portugal (a não ser, porventura, partidos como a Iniciativa Liberal, que ainda assim defende o modelo holandês e não o americano).

É nestas alturas – e em todas as outras – que devemos bendizer o SNS que temos. Um instrumento de justiça social, além de saúde pública. Morria-se, de facto, em Portugal por falta de médicos e de medicamentos, morria-se em Portugal por se nascer fora das classes privilegiadas. Foi isso que o SNS trouxe: o direito a todos terem os mesmos direitos e oportunidades de saúde, independentemente das suas condições pessoais e sociais. Foi, e é hoje, um enorme fator de promoção da justiça e da igualdade social. Na Saúde, e sobretudo, na pior das doenças como é uma pandemia.

Sim, o SNS está no limite, com uma suborçamentação crónica dos últimos anos que o tem deixado à beira da rutura. Tem muitas falhas na organização, ineficiências, faltas graves de equipamentos de proteção, debilidades várias. Provavelmente, vai passar nas próximas semanas pelo maior desafio que alguma vez teve de enfrentar desde a sua fundação, há 40 anos. Serão dias mesmo muito difíceis, como se tem visto em Itália e em Espanha. Mas Portugal tem o essencial: os valores certos que todos partilham, a vontade férrea e profissionais que vestem a camisola, arriscando tantas vezes a própria vida, com uma abnegação comovente e um sentido de missão. Com o diabo à solta (agora sim!), é um conforto sabê-lo. Tratemos de lhes dar condições para fazerem o seu melhor.

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