sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Cheiro de gás

Solange M. T. Hernandes foi lembrada por mais de um comentarista político nos últimos dias. Funcionária da Polícia Federal, ficou tão conhecida nos anos 1970 que seu nome virou sinônimo da censura a jornais, revistas, livros, filmes, peças, músicas, noticiários e novelas, amplamente praticada pelo regime militar. Sua tesoura inoxidável mutilava não só manifestações de oposição, mas tudo aquilo que ela considerasse atentatório à moral e aos bons costumes.


Estaríamos assistindo à volta dos tristes tempos de dona Solange? É o que se perguntam todos quantos se preocupam com a escalada dos destemperos verbais do presidente Bolsonaro e de seus subalternos contra a imprensa e artistas conhecidos; a ameaça de impor filtro à produção cinematográfica; as demissões em organismos ligados ao Ministério da Cultura; e a suspensão de financiamentos de empresas públicas a atividades culturais se os beneficiados tiverem o perfil “errado”.

Há quem sustente que, a despeito do linguajar chulo do presidente, apenas estaríamos diante de mudanças esperáveis de um governo de extrema direita eleito segundos as regras do jogo: governo de extrema direita, políticas culturais de extrema direita, executadas por funcionários de mesma orientação. Bolsonaro retruca que não se trata de censura, mas de defesa dos valores cristãos compartilhados por faixas extensas da população —das quais se imagina representante.

É fato que dona Solange serviu a um regime de força, sua atuação autorizada pelo Ato Institucional n°5 e pela Lei de Censura. Hoje vivemos outros tempos, sob democracia e com ampla liberdade de expressão. Mas não há como ignorar a tensão permanente entre as instituições democráticas vigentes e um presidente de clamorosa inclinação populista e autoritária. Nesse particular, de todo modo, o Brasil não é um caso único.

Ali onde populistas de esquerda ou de direita conquistaram o governo, a imprensa independente, intelectuais e artistas tornaram-se alvos prioritários de tentativas de censura e descrédito. Em alguns países, as investidas tiveram êxito —a exemplo de Hungria, Filipinas, Polônia, Rússia e Venezuela. Em outros, nem tanto. Apenas irritam e poluem a atmosfera política, como nos Estados Unidos e na Itália. Tudo parece depender da resiliência das instituições democráticas.

Não é possível saber de antemão como será aqui. Os tempos de dona Solange ainda não estão de volta. Mas as manifestações e as medidas tópicas tomadas pelo governo são como o gás que escapa lentamente de um vazamento sem que se dê muita atenção. Até que seja tarde demais.
Maria Hermínia Tavares de Almeida

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