quarta-feira, 10 de abril de 2019

O futuro do passado já mudou irremediavelmente

Houve um tempo em que as pessoas mais românticas - ou mais organizadas -- voltavam de viagem com grandes envelopes cheios de lembranças: passagens de trem e de avião, bilhetes de metrô, entradas de cinema e de museu, folhetos, embalagens de balinhas e de chocolates, programas de teatro, contas de restaurantes e de compras variadas, recortes de jornais e de revistas. A viagem continuava em casa, quando esses papeizinhos todos eram amorosamente colados em álbuns junto com as melhores fotos do tour .

Nos Estados Unidos, a partir desse hábito, criou-se todo um universo comercial multicolorido, com papelarias especializadas vendendo adesivos, folhas estampadas, etiquetas, acessórios, papéis artesanais. Em fins dos anos 1990, o scrapbooking virou febre, especialmente entre adolescentes.

É uma ironia imaginar que, naquele exato momento, a tecnologia também começava a se popularizar: em breve, a fotografia tradicional, em papel, seria apenas um retrato na parede.


O scrapbooking , porém, não morreu. É bonito e atraente demais para isso. Papelarias continuam vendendo material e, paralelamente, há milhões de páginas e de imagens para imprimir online.

Mas os dias de febre passaram. A própria natureza das nossas lembranças está mudando. No outro dia, Peter Funt lembrou, no "The New York Times", que tíquetes para antigos jogos de baseball valem milhares de dólares -- mas já não há mais tíquetes no nosso universo digital, em que a entrada para o estádio (e a passagem de avião e o bilhete do metrô) estão em códigos QR no celular.

Temos uma quantidade de material para memória muito maior do que jamais tivemos, porque as nossas mínimas conversas - "Traz pão quando vier para casa!" - estão armazenadas no WhatsApp, e fazemos centenas de fotos por dia, mas na verdade é como se nada existisse para além do momento da sua criação. Muita coisa se perde, de fato, por um ou outro motivo técnico, mas desde que o backup em nuvem se tornou automático, isso já não é uma preocupação.

O que ameaça a lembrança dos dados que geramos e que recebemos é o seu volume descomunal: o Google já é capaz de encontrar fotos de animais de estimação pelos seus nomes, mas não há máquinas de busca nem inteligência artificial que consigam desencavar vagas recordações.

A última cena de "Indiana Jones e os caçadores da arca perdida" mostra a Arca da Aliança sendo fechada num caixote de madeira, que é guardado entre milhares de outros caixotes de madeira iguais, armazenados em pilhas num remoto depósito do governo: naquele momento, temos certeza absoluta de que lá ela jamais será encontrada, nunca, em tempo algum... ainda que esteja em perfeita segurança.

Nossos emails e fotos estão em perfeita segurança na nuvem, e em tese estão à nossa disposição quando precisamos deles -- mas a questão é que nem só de precisão se fazem as lembranças. Elas tinham o hábito de morar em gavetas e em álbuns e de nos assaltar inesperadamente. Continuarão fazendo isso por mais algum tempo, enquanto as últimas gerações que cresceram num mundo analógico ainda andarem sobre a Terra, mas o futuro do passado já mudou irremediavelmente.

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