sábado, 2 de novembro de 2019

A geopolítica social da insurgência popular

O presidente, desde a posse, opina belicosamente sobre a situação política de países vizinhos. Tem saudade de Pinochet e de seu fascismo no Chile: as atuais manifestações de rua estariam ocorrendo porque a ditadura militar de lá acabou. Não sabe que acabou faz tempo.

Deu palpites agressivos nos rumos da campanha eleitoral argentina, censurou o candidato de oposição. Manteve pé atrás em relação a governos de outros países. Não sabe que a Segunda Guerra Mundial terminou, que o muro de Berlim caiu, que ideologia não é só a dos outros, mas também a sua. Trava combates como Dom Quixote combatia moinhos de vento. Falta-lhe um Sancho Pança no governo.

Já que se meteu em seara alheia, onde aliás não foi chamado, o presidente vem sendo derrotado politicamente, nestes dias, em todas essas suas “frentes internacionais”. Acaba de perder a eleição na Argentina. Da diplomacia do coturno, diz que sequer vai cumprimentar Alberto Fernández, o vitorioso.


Foi derrotado pela multidão nas ruas do Chile, que protestam contra a política econômica e os retrocessos sociais de Sebastián Piñera, basicamente a mesma política que está adotando aqui, guiado pelo cérebro de quem foi servidor do regime de Pinochet.

Um reajuste no preço das passagens do metrô de Santiago do Chile colocou nas ruas 1 milhão de pessoas em manifestações contra o governo conservador do país. O protesto foi detonado pelos centavos, mas gestado aos poucos pelas medidas e inovações dos gênios da economia neoliberal. Depois de mortos, feridos e prisioneiros, o presidente chileno tentou recuar. Falou de seu apreço pelo teor do protesto popular e pediu a seus ministros que renunciem. Quer recuar para ficar.

É uma indicação de que os desse naipe sabem que, nas medidas que tomam, estão fazendo uma experimentação para sentir até onde podem chegar nas iniquidades econômicas que praticam contra o povo de seu país. O que mostra que os políticos que se servem do neoliberalismo econômico para atenuar a democracia e assegurar o jugo do capital sobre a população têm medo. Sabem que se passarem do limite de tolerância desencadearão transformações políticas completamente fora do controle da racionalidade instrumental simplória que adotam para governar. Vale lá e vale aqui.

A fragilidade da prepotência antiliberal e anticapitalista ganhou um teste no Brasil, no medo manifestado pelo general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, em relação ao que poderá ocorrer também aqui, já que este governo segue a mesma receita econômica do desastre social de lá. Ele deu indicações aos supostamente poderosos da economia brasileira do que está acontecendo no Chile.

Nas reformas econômicas daqui podem estar criando as condições políticas de explosões populares como as de lá.

Ou seja, ele sabe que o economicismo do governo brasileiro, sem consideração por seus limites sociais, é o alicerce de uma política de injustiças. Sustenta uma economia de favorecimento de poucos e que, no limite, não favorece a nação. Preocupado com geopolítica, ele já deve desconfiar de que existe, também, uma geopolítica social da insurgência popular. Boa parte do continente começa a tremer.

Centavos a menos no bolso de quem vive de uma crescente desvalorização econômica do trabalho pode assegurar milhões no lucro das empresas, mas levam aos prejuízos políticos de centenas de milhares nas ruas a contestar atos do governo e, no limite, a questionar sua legitimidade. Povo na rua significa governo de menos, frágil. Mas porrete não legitima o poder de ninguém. Sob diferentes formas sociais de manifestação, as revoluções continuam sendo um ativo das grandes tradições de expressão do descontentamento popular. Aqui, também.

Mourão dá indicações de saber que o povo brasileiro, ao optar por eles, em 2018, não estava necessariamente optando por aquilo que são e pensam. Nem renunciava à sua condição de fonte da legitimidade do mandato de governar.

Deveriam saber que chegaram ao poder na onda das manifestações de rua iniciadas em 2013. Talvez Mourão esteja levando em conta que, no Brasil, as manifestações de rua de 2016, por causa de um aumento de centavos no preço das passagens de ônibus, precipitaram o fim da hegemonia política do PT e inviabilizaram o poder para o sucessor.

O bolsonarismo chegou ao poder nessa mera brecha de legitimidade. Mas ainda não levou em conta que quem põe também tira. O bolsonarismo não é o finalmente de um processo político. É apenas o entretanto de um vazio decretado pela população que foi às ruas depois de somar as demonstrações de desapreço dos políticos que se equivocam na suposição falsa de que o voto foi renúncia ao direito de eleger para discordar.
José de Souza Martins

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