quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Esta não é uma comédia natalina

A história de como se deu uma operação de ataque virtual maciça contra a atriz Blake Lively, revelada na edição de domingo do New York Times, ensina muito sobre como funciona a comunicação na internet. Sobre como as redes sociais são facilmente manipuláveis. Custa algum dinheiro construir o consenso a respeito de um tema, mas não é difícil. Por tabela, somos todos também presas fáceis dessa manipulação. As táticas usadas contra ela também não se limitam ao mundo do entretenimento. Fazem parte do arsenal de incontáveis grupos políticos pelo mundo.

Lively protagonizou, no meio do ano, o drama romântico “É assim que acaba”, dirigido pelo ator com quem contracenou, Justin Baldoni, e produzido por Jamey Heath. Os dois, vozes militantes em defesa de mulheres assediadas no movimento #MeToo, tornaram a filmagem um pequeno inferno para a atriz. Baldoni insistia em beijos não previstos, tentou inserir cenas de sexo que não estavam no roteiro. Tanto ele quanto o produtor entravam no camarim de Lively, sem bater, quando ela estava ainda se vestindo. Heath mostrou para ela fotos de sua mulher nua, no celular. O ambiente era consistentemente sexualizado por ambos. Incomodada, ela reclamou com o estúdio e exigiu a presença de alguém que gerenciasse as situações de intimidade no set de filmagem. É uma profissão recente, cada vez mais comum para evitar justamente esse tipo de constrangimento.

Quando o lançamento se aproximava, receosos de que a situação fosse tornada pública, produtor e diretor decidiram contratar uma agência de comunicação que faz esses tipos de ataque. Toda a estratégia foi montada por Melissa Nathan, especialista em “gerência de crise de imagem”.

A ação não é complexa. A agência contrata gente que lidera enxames de ataques em inúmeras redes. Um lança aqui uma teoria da conspiração, outro faz uma acusação, uma insinuação. Mas não é só isso. Os contratados controlam mais de um perfil falso e comentam também. O objetivo é construir uma onda em que, em determinado período, boa parte das postagens que se referissem a Blake Lively fosse negativa. E sempre dá certo.

A reportagem do Times não conta que essa técnica é antiga: foi desenvolvida por um ex-engenheiro da Olivetti chamado Gianroberto Casaleggio. Tudo se baseia numa descoberta que ele fez ainda no século passado. Se um pequeno número de pessoas controlando perfis falsos entra num debate on-line e toma parte da conversa levando o argumento para um dos lados, os outros usuários acompanham. Gente, no mundo digital ou no real, gosta de se colocar no lado da maioria. Casaleggio batizou a tendência de “avalanche de consenso”. Quando parece haver maioria para um lado num debate nas redes — se uma atriz é boa pessoa ou mau-caráter — um consenso se constrói.

Foi para isso que Melissa Nathan e seu time foram contratados: para construir o consenso, nas redes, de que Blake Lively era má. Traiçoeira. A onda on-line foi acompanhada de uma série de reportagens maldosas plantadas nas imprensas de fofoca americana e inglesa. Tudo, embora coordenado, parecia espontâneo aos olhos de quem via. O objetivo era esse mesmo. Caso vazassem as histórias a respeito do que ocorreu durante as filmagens de seu último filme romântico, ela seria percebida como mentirosa.

Grupos políticos apelam a esse tipo de estratégia toda hora, com militantes carregando palavras de ordem, explicação para acusações, criando situações que lhes pareçam favoráveis. Quando gente o suficiente, poucas centenas, se manifestam a respeito de um tema meio que simultaneamente numa rede, o assunto aflora. Parece ser algo que movimenta os interesses de muitos. Mas não necessariamente é — as centenas podem ser poucas dezenas operando um punhado de perfis falsos.

Redes sociais são suscetíveis a esse tipo de manipulação. E, nós, à formação de consensos nas bolhas a que pertencemos. É fácil criar um mundo preto no branco onde pessoas são ou boas ou más. Onde nos dividimos entre amigos e inimigos. A técnica de Casaleggio tem quase 30 anos e é dominante na comunicação digital faz quase dez. Se há surpresa, é uma só: que continue a ser usada sem que tenhamos um debate mais sério sobre como conversamos no mundo da internet.

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