“Mas mais belos do que tudo eram os olhos, os olhos claros, luminosos de solidão e de doçura. No próprio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabeça para o céu. (…) A sua cara escorria sofrimento.”“O Homem”, Contos Exemplares, Sophia de Mello Breyner Andresen
Não tenho a menor pretensão de possuir uma perspicácia ou sensibilidade excepcionais. O que vejo não é mais do que outros vêem. Boa parte dos meus amigos, aliás, vê muito melhor do que eu. Nesta época, tudo serve para explorar emoções e apelar à sensibilidade. Sem querer magoar alguém, creio que se tira proventos ridículos do lirismo da época, fingindo sentimentos de rara empatia. Francisco Umbral diria disto, desta maré literária hipócrita e oportunista, “a la mierda com todo”.
Nos jornais multiplicam-se as crónicas emotivas e, em pouco menos de três dias, escutei duas crónicas radiofónicas sobre a indulgência para com pobres, espoliados e desafortunados, e como pessoas dessa condição despertaram nos locutores sentimentos de enorme e sincera piedade.
Como se sabe, o Natal é uma época propícia a doutrinas conservadoras e à antropologia da família. Aqueles que se encontram fora desse enquadramento tendem a sofrer por comparação e a ver a sua solidão mais destacada: a morte de familiares, a ausência, a separação sentem-se com maior ênfase; mas também os conflitos não resolvidos, os equívocos, os mal-entendidos que 11 meses do ano foram incapazes de extinguir. O nosso interior alimenta-se do nosso exterior, cujo centro é também o nosso centro.
Como o havia dito noutro lugar, vivemos tempos em que até as emoções se tornam mercadoria. Que nos interessa saber como alguém se emocionou com o pobre que viu na rua, com a velhinha solitária do quarto andar, com o pedinte que nos fere o orgulho? A todos aqueles que escrevem sobre bonitos sentimentos de desbragada empatia aconselho o seguinte: guardai a empatia no lugar mais recôndito do vosso ser, deixai de exibir fraternidade e de a prostituir em literatura sentimental, evitai, mesmo, incomodar-nos com a vossa compreensão franciscana. Nós sabemos como sois munidos de caridade, mas não fazei dela alarde nem no-la gritai aos ouvidos. Também a bondade reclama discrição.
E lembrai-vos: não sois mais do que os outros. Se tínheis uma nota e não a entregastes ao pedinte, esse é um problema vosso. Nós não queremos saber. Já nos basta ter de encarar pobres e miseráveis, diariamente, nas ruas do Porto, de Lisboa, de Coimbra, de Braga e o diabo a sete, e ter de dissimular a raiva de nos virem testar a humanidade, de subirmos o vidro do automóvel no intervalo dos semáforos, de fingirmos olhar para o lado, de fecharmos os olhos para que um milagre nos absolva de sentir a presença do outro, de sucumbirmos à mais radical das insensibilidades, de nos embrulharmos, justificados, na racionalidade do mundo injusto com que fundamentamos a impotência de um gesto. Sim, nós conhecemos esse arquétipo de pobre, que condensa a criança, a mulher, o velho, o rapaz, o toxicômano: é o homem do conto de Sophia: O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas. Se transformámos a vida num esgoto, o difícil é não naufragar na porcaria. Por isso, calai.
Nada há a dizer sobre as pessoas que trabalham pelos outros ou pelas que evitam o sofrimento dos outros ou pelas que, sem a preocupação de não corrigir os males do mundo, não são também as que fazem mal aos outros. Cada um faz o que pode. O que me incomoda não é isso. O que me incomoda é o anúncio dos bons sentimentos, a sua publicidade, a sua comezinha partilha. Como compreendo, igualmente, os que abjuram o Natal…
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