Trezentos ou quatrocentos bilhões de reais – quem se importa com isso? Em mais uma trapalhada bilionária, o presidente Jair Bolsonaro abriu uma espécie de liquidação de outono-inverno e antecipou o desconto para a negociação da reforma da Previdência. Na mesma ocasião, um café com a imprensa, ele rejeitou a ideia – jamais proposta – de se transformar o Brasil num país de turismo gay. Poderá ficar à vontade, acrescentou, quem “quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher”. Estará pensando em alguma nova regulamentação federal para motéis? Ainda no café, ele tentou disfarçar a relação complicada com o vicepresidente, Hamilton Mourão, frequentemente atacado por seus filhos. Não convenceu, obviamente, até porque nunca aceitou a ideia de enquadrar seus herdeiros e mandá-los deixar de se meter nos assuntos do Palácio do Planalto.
A trapalhada com maior repercussão foi a referência ao efeito fiscal da reforma. O ministro da Economia, segundo o presidente Bolsonaro, aceitará um ganho de apenas R$ 800 bilhões em dez anos, mas nada abaixo disso. Não precisava e muito menos devia fazer essa declaração. A negociação mal começou e a comissão especial ainda vai iniciar seu trabalho. Mas o presidente já disse até onde os parlamentares poderão desidratar o projeto – até R$ 400 bilhões, se for tomada como ponto inicial a meta de US$ 1,2 trilhão recém-anunciada pela equipe econômica.
No mesmo dia o presidente ganhou destaque por mais uma façanha incomum: mandou o Banco do Brasil suspender uma campanha publicitária e demitir do posto o diretor de Marketing. Foi uma nova intervenção numa estatal de capital aberto. Desta vez, a intromissão foi obviamente motivada por preconceito e por sua bem conhecida homofobia, sem a mínima fundamentação técnica. A campanha, centrada na diversidade, era parte de uma estratégia de aproximação do público jovem. Publicidade é assunto profissional, mas um presidente iluminado por Deus e empenhado na defesa da moralidade e no combate ao marxismo cultural está acima dessas ninharias. A propósito, ainda no café com a imprensa ele se declarou, novamente, aliado do presidente Trump. Poderia ter dito “alinhado”.
Antes de intervir no Banco do Brasil, o presidente Bolsonaro já se havia intrometido na administração da Petrobrás, e por motivação mais prosaica: atender a exigências de caminhoneiros, aqueles mesmos apoiados por ele, ainda candidato, quando bloquearam estradas, cometeram violências e impuseram enorme perda a empresas e consumidores.
Ao invadir o comando da maior estatal brasileira, ele impôs à Petrobrás uma perda de R$ 32,4 bilhões em seu valor de mercado. Esse efeito foi produzido com um simples e baratíssimo telefonema. Bastou chamar um diretor da empresa e mandá-lo abandonar, ao menos por alguns dias, o então recém-anunciado reajuste de preço do diesel. Errou perigosamente, naquela ocasião, quem imaginou ter o presidente mostrado toda a sua capacidade de comprometer bilhões. O presidente da Petrobrás, assim como o do Banco do Brasil, aceitou com aparente alegria a intromissão do presidente da República. Qual será a reação se ele quiser ditar a política de juros do Banco Central?
Mas convém voltar às trapalhadas do café com jornalistas, quando o presidente falou sem pensar – ou pensando segundo seus padrões – sobre os efeitos fiscais da reforma da Previdência. Pela avaliação inicial da equipe econômica, a reforma da Previdência permitiria evitar um gasto de R$ 1,1 trilhão em dez anos. Pela última estimativa, a economia poderá passar um pouco de R$ 1,2 trilhão.
De acordo com a margem de negociação indicada pelo presidente, o desconto máximo poderá ficar em torno de R$ 400 bilhões. Nesse caso, corresponderá a cerca de um terço, ou 33%, do ganho máximo projetado pelos técnicos do Ministério da Economia. Ao admitir essa perda, o presidente antecipouse aos negociadores, complicou seu trabalho e aumentou o risco de empobrecimento da reforma. Depois do café ele pareceu arrepender-se de ter avançado na discussão.
Não existe um “dado mínimo”, corrigiu-se o presidente, na saída. Ele ainda lembrou o valor “em torno de R$ 1 trilhão” citado várias vezes pelo ministro Paulo Guedes. Mas alguma perda ocorrerá no Congresso, admitiu, e será preciso mantêla em nível tolerável.
Quando o presidente Bolsonaro ensaiou essa autocorreção, sua fala sobre o piso de R$ 800 bilhões já havia sido divulgada por agências de notícias, portais da imprensa, rádios e televisões. Esse número predominou, ainda, nas informações publicadas nos jornais no dia seguinte e nas programações matinais de notícias. A trapalhada era sem conserto.
“Se Bolsonaro falar menos sobre a reforma até ela ser aprovada, vai ajudar bastante”, disse à Rádio Eldorado o recém-escolhido presidente da comissão especial formada para analisar a proposta, deputado Marcelo Ramos (PR-AM). “Cada vez que Bolsonaro fala sobre a reforma, retira alguma coisa.” Com isso ele dificulta o trabalho da equipe econômica, acrescentou o deputado. Essa equipe, segundo ele, é uma exceção no governo federal, por ter “uma visão clara de projetos e propostas para o Brasil”.
A avaliação do deputado é ainda um tanto generosa. De fato, o governo, excluído o time econômico, tem sido incapaz de apresentar ideias parecidas com algum plano para o País. Mas poderia apresentar? O presidente Bolsonaro fala ocasionalmente sobre a Previdência, quando é pressionado para mostrar algum interesse, mas pouco se ocupa de suas funções. Gasta mais tempo com exibições de homofobia e de moralismo, interfere na gestão de estatais, faz desaforos a parceiros comerciais importantes e dá vexames internacionais, como quando atribuiu à esquerda as barbaridades nazistas.
Já completando quatro meses de mandato, parece ainda longe de entender a função presidencial e o significado de governar. Entenderá, algum dia?
Nenhum comentário:
Postar um comentário