A definição é mais atual do que nunca, tanto lá como cá. Nos Estados Unidos, pelo lançamento esta semana da candidatura democrata de Joe Biden, que pela terceira vez tenta chegar à Casa Branca — agora com o currículo acrescido de oito anos como vice de Barack Obama. A atenção geral também está voltada ao desempenho do atual ocupante do cargo, Mike Pence, devido à governança ciclotímica do presidente Donald Trump.
No Brasil, o foco da semana esteve em Hamilton Mourão. Ou melhor, nas intrigas e embates explícitos, quase psiquiátricos, que sua recente encarnação como “poder moderador”, ou “traidor”, tem gerado. Má notícia para quem avalia que as desconfianças intestinas haverão de serenar com o tempo. O livro citado demonstra que à exceção de um caso, em todos os governos dos EUA desde 1953 (Dwight Eisenhower/ Richard Nixon), as relações entre presidente e vice tendem a se deteriorar com o passar dos anos. O titular vive no presente, o vice opera com o futuro, e analisa o quanto as políticas do chefe afetarão suas chances de algum dia ocupar o cargo. Neste exercício contínuo de equilibrismo, todo vice-presidente traz à mente do presidente a sua mortalidade política. Ou a sua mortalidade física mesmo. Como comentou George W.H. Bush (vice de Ronald Reagan) em tom semi-ácido ao ser informado do falecimento de um chefe de Estado estrangeiro, “You die, I fly”( "Você morre, eu levanto voo"). Referia-se à função do vice de assistir a funerais oficiais de segunda classe.
A exceção à regra foi o duo Obama/Biden, cuja relação tanto pessoal como de confiança institucional cimentou-se com o tempo. Quase não se conheciam ao assumirem os cargos, e como Biden fora um dos concorrentes derrotados para a indicação democrata, o entrosamento inicial não foi suave. Segundo relato de Ron Klain, chefe de gabinete de Biden, Obama definiu o papel de cada um na Casa Branca nos seguintes termos: “Esta é a minha casa, Joe, e estas são as minhas coisas. Tenho grande interesse em seus pontos de vista, gosto de seus argumentos e quero que se sinta feliz aqui. Mas você é um hóspede na minha casa”. O grande diferencial neste caso foi a confiança mútua de lealdade, habitual centro nevrálgico de crises entre titular e suplente.
Em café da manhã com jornalistas esta semana, o presidente Jair Bolsonaro recorreu à surrada comparação das dificuldades de governança a um casamento. E acrescentou, não se sabe se em referência a Luís XIV, que “vice é sempre uma sombra e, às vezes, não se guia de acordo com o sol”. Só que na outra ponta da equação está um ocupante de cargo que não pode ser demitido, e aprecia o papel de indecifrável.
Em condições normais de temperatura democrática, ensina a autora de “First in Line”, o mais difícil para um vice em exercício é concorrer e vencer uma eleição para presidente quando expira o mandato do titular. Dos 14 que chegaram à Casa Branca em mais de 200 anos de história dos Estados Unidos, apenas 4 conseguiram essa passagem direta através das urnas — os demais assumiram o poder por morte ou renúncia do ocupante do cargo, ou foram eleitos quando já não eram mais vices. No Brasil, não há caso de vice em exercício que tenha obtido o aval do presidente a quem serve para sair candidato, e ser seu sucessor.
No fundo, a job description de um vice cabe na definição sumária do historiador Arthur Schlesinger Jr: “Um cargo de frustração espetacular e, a meu ver, incurável”. Para presidentes inseguros com filhos vigilantes, um perigo.
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