quarta-feira, 23 de agosto de 2017

É possível ser juiz e compadre?

Quando morava entre os nacirema, recebi dois conselhos inesquecíveis. O primeiro veio de meu tutor harvardiano, Richard Moneygrand, quando me disse que eu deveria frequentar reuniões sociais acompanhado. Diante da minha surpresa, explanou: “É que vocês, intelectuais brasileiros, ungidos por dom-juanismo, têm o costume de não levar as suas mulheres às festas. Mas aqui — completou rindo — ninguém pensa em comer a mulher dos outros.”

Soube depois que Loucile Shell — a primeira das 11 ou 12 esposas de Dick — havia sido “cantada” por professores brasileiros seduzidos por seus olhos da cor do céu. Houve, inclusive, um boato de um caso de Lou com Eduardo Gato, um dos nossos mais insinuantes e engajados intelectuais, mas eu não estou aqui para fofocar.

Já o segundo conselho eu ouvi quando convidei uma secretária para jantar na minha casa e ela, polidamente, recusou. “Aqui, eis o meu conselho, disse-me um sisudo colega, a vida se ordena profissionalmente. Uma secretária não frequenta a casa de um professor!”

“A amizade não vence o papel profissional, neutralizando diferenças?”, perguntei.

“Não! Como manda o credo igualitário, o papel público deve disciplinar os sentimentos. A consciência do cargo tem primazia. Vocês acham que costumes podem ser modificados por leis; nós, ao contrário, confiamos mais nos nossos costumes do que no governo. Sem consciência dos papéis, não há ordem igualitária. A igualdade não depende somente do Estado, mas do Estado com (e não contra) a sociedade.”

Simpatizante da KKK, o colega passou mas o conselho ficou.

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O ministro do STF Gilmar Mendes faz uma pergunta capital: “Você acha que ser padrinho de casamento impede alguém de julgar um caso?”

O uso e o abuso dos elos pessoais no campo formal são o nosso problema central. Como mostro na minha obra, há um dilema entre muitas leis e pouca reflexão sociológica sobre o peso de uma ética da casa que é levada para o mundo impessoal da rua. Não é minha intenção julgar ou denunciar um julgador, mas ampliar, nos limites de um texto jornalístico, um problema central da sociologia de países que, como o Brasil, têm tentado adotar a agenda ideológica da democracia liberal.

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A questão do ministro nos abre para as ambiguidades do “você sabe com quem está falando?” e do “jeitinho”. Se você responder com um “não”, você presume que o juiz vai englobar — subtraindo — o padrinho. Mas se você ouvir sua mulher, parentes e amigos e, mais do que isso, rememorar sua biografia, você vai verificar que o “não” é muito complicado.

Num sistema relacional — uma estrutura na qual as relações são mais importantes do que os atores — o juiz solta o indiciado que é muito mais afilhado do que um cidadão sujeito da lei. Não é fácil ficar com a lei numa terra onde a lei é para inimigos; num sistema no qual se resiste a tudo, menos ao pedido de um amigo; e amor com amor se paga!

Como indivíduos-cidadãos, somos todos sujeitos da lei, mas os laços com certas pessoas relativizam o estatuto político-legal, fazendo com que a lei universal — essa clave mestra da democracia — torne-se um estorvo e seja ignorada, reprimida ou arrogantemente aviltada.

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A pergunta revela o conflito entre as forças explícitas dos cargos públicos — os juízes têm tido um papel crítico no exercício da democracia brasileira — ao lado do poder silencioso dos protocolos costumeiros investidos nos papéis de padrinho, pai, tio ou marido. Num caso, há um juramento público, e a nossa leitura pende mais para o lado dos direitos (do chamado “poder”) do que dos deveres (as obrigações e reponsabilidades) contidos nestes papéis. No outro, há apenas a atuação irrefletida do papel cujas obrigações não são explícitas. Como, então, decidir se seremos juízes ou padrinhos quando ambos os papéis têm o mesmo poder mobilizador num sistema elitista no qual tem prevalecido o “você sabe com quem está falando?” de quem tem autoridade?

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A intimidade e as simpatias dissolvem o formal e o legal num doce jeitinho, mas tal atitude tem consequências políticas. Aliás, um dos problemas mais complexos para uma sociedade tão elitista como a brasileira é que ela própria não tem consciência cabal das responsabilidades do seu elitismo. De fato, o nosso elitismo apenas sabe dos seus privilégios e só agora, às custas da Lava-Jato, de uma nova geração de agentes da Justiça e de uma crise bíblica, é que ela começa a se descobrir como tendo obrigações.

A pergunta do ministro é sintomática da ausência de uma ética pública. Valer dizer: de uma “ética política” porque é justo no mundo público que surgem os becos pelas quais escapolem legalmente compadres, parentes, correligionários e amigos.

Roberto DaMatta

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