quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Brasil brasileiro

O juiz Sergio Moro, que ninguém pode considerar um sujeito mole, decidiu há pouco liberar para o publicitário João Santana, astro da propaganda dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, 10 milhões de reais de suas contas bancárias bloqueadas pela justiça. Santana, como é do conhecimento geral, esteve na cadeia durante sete meses, em 2016, foi condenado por praticar dezenove crimes de lavagem de dinheiro, delatou os companheiros e hoje, em companhia da mulher, cumpre pena de prisão domiciliar com tornozeleira. Moro, atendendo a pedidos da defesa, considerou que ambos estavam passando por dificuldades financeiras no momento, e permitiu que tivessem acesso a esse dinheiro essencial para a sua sobrevivência. Dias depois, agora atendendo pedidos da acusação, mudou sua decisão e acabou bloqueando o desbloqueio. Eles que se entendam perante a lei, é claro – juiz, acusação, defesa e réus. O que fica para o público pagante, para além das questões legais, é a diferença quase incompreensível entre o mundo material em que vivem João Santana e seus clientes, de um lado, e o mundo dos cidadãos brasileiros de carne e osso, de outro.
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São dois planetas separados por um abismo, um bom e um ruim, e habitados por espécies diferentes. Um brasileiro que ganha 1.500 reais por mês levaria 500 anos para juntar os 10 milhões que João Santana está precisando para pagar suas despesas correntes. Que nexo tem uma coisa dessas? Quem poderia estar precisando de 10 milhões de reais para aliviar o seu orçamento pessoal? Enfim: o que pode existir de comum entre o marqueteiro e o povo que ele colocava no paraíso, na fantasia dos seus comerciais de TV, em troca de “dinheiro de campanha”? Uns 99% da população brasileira, ou algo assim, não vão ter uma fortuna dessas, em dinheiro, durante toda a sua vida – estão do lado errado do abismo. João Santana e os que lhe pagaram estão do lado certo.

Os 10 milhões mostram quem é quem, na vida real deste país, em matéria de concentração de renda.

Uma vereadora de São Paulo, em busca de justiça histórica, acaba de propor um movimento para banir das placas de ruas nomes de gente remota no tempo e suspeita de ter cometido crimes contra “os direitos humanos”, a começar pela escravidão. Sobrou para um pobre Barão de Joatinga, que dá nome a uma pequena rua do centro de São Paulo – e de quem nunca se tinha ouvido falar. O barão, que nasceu e morreu na cidade de Bananal, no velho Vale do Paraíba, onde tinha uma fazenda com escravos, parece ter sido um homem particularmente opaco na história do II Império. Agora, 133 anos depois de morto, a vereadora quer que a Rua Barão de Joatinga passe a se chamar Rua Dandara dos Palmares – tida como mulher de Zumbi e figura de quem se sabe, como no caso do barão, bem pouca coisa de certo.

A proposta deixa dúvidas. Foi elogiada como um gesto de grande coragem – afinal, a vereadora está enfrentando ninguém menos que o Barão de Joatinga. Qual será o seu próximo passo? Propor a troca de nome da Avenida Duque de Caxias, por exemplo? Seria uma proposta bem lógica, pelo mesmo critério – o duque, como o barão, tinha escravos. É verdade que um duque é mais que um barão – e esse duque, em especial, é também o patrono do Exército brasileiro, o que talvez faça a vereadora adotar uma atitude mais prudente. A cidade aguarda.

A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia conseguiu, dias atrás, dar uma contribuição notável para o Acervo Permanente da Ignorância Nacional – um feito capaz de chamar a atenção, mesmo levando-se em conta o rico histórico que as universidades brasileiras acumularam ao longo do seu combate sem trégua contra o conhecimento. Durante a última visita do ex-presidente Lula à Bahia, a UFRB tentou entregar a ele um título “de doutor honoris causa”, para atender “um antigo desejo de setores da comunidade universitária”. Um juiz federal de Salvador bloqueou a entrega, por considerar o ato ilegal e lesivo à “moralidade pública”, mas o diploma ficou – e o seu texto, que agora não dá mais para apagar, consegue cometer dois erros em menos de quatro linhas e meia. É o velho problema de escrever e imprimir coisas em papel.

O diploma, pelo que dá para entender, foi concedido a Lula pelos alunos da UFRB. Mas não são os professores, em vez dos estudantes, que assinam diplomas de doutor? Além disso, os alunos escolheram uma palavra que não existe nos dicionários da língua portuguesa para se identificarem como os autores da honraria. O diploma aparece assinado pelos “dicentes” da universidade. Imagina-se que quiseram dizer “discentes” – a palavra correta para designar quem estuda. Eis aí, em toda a sua beleza bruta, mais um episódio da nossa comédia permanente. Já temos universidades capazes de expedir títulos de doutor com erros de português.

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