Os brasileiros gostamos de acreditar que vivemos numa democracia plena e madura. São abundantes, no entanto, os incômodos sinais da precariedade do regime. Eleições regulares e limpas, apenas, não são suficientes para qualificar um regime como democrático – a autocracia venezuelana, campeã mundial de consultas populares, talvez seja o melhor exemplo disso. Tampouco Poderes aparentemente independentes bastam para que se possa considerar completo o ciclo de maturidade democrática. Nem mesmo a existência de uma imprensa livre autorizaria a conclusão de que vivemos num ambiente de democracia estável.
Na verdade, a construção de uma democracia digna desse nome apresenta todos esses aspectos, entre outros tantos, mas apenas como uma consequência natural do que se poderia chamar de “cultura democrática”. E esta o Brasil está ainda muito longe de ter, principalmente porque o Estado ainda é tratado como patrimônio pessoal de quem detém o poder.
Cultura democrática pode ser definida como a que privilegia a autonomia dos indivíduos para se organizar, sem interferência ou dependência do Estado, senão como aquele que garante a paz social e o cumprimento das leis. O cientista político Francisco Ferraz dedicou a essa importante questão seu mais recente livro, Brasil: A Cultura Política de uma Democracia Mal Resolvida (AD2000 Editorial), e lá se lê que o País ainda não se democratizou de fato, pois nenhum dos avanços circunstanciais que o Brasil teve conseguiu mudar “essa fixação brasileira pelo Estado patrimonialista, centralizador e intervencionista que nos acompanha desde o descobrimento”.
Para entender o atual estágio da democracia no Brasil, Ferraz faz uma anatomia dessa forma de governo ao longo da História ocidental e analisa as principais experiências ditas democráticas, qualificando-as de acordo com a solidez institucional que apresentam. Aqueles que consideram o Brasil uma democracia vigorosa, forte o bastante para resistir à tentação autoritária subjacente aos projetos messiânicos que de tempos em tempos se nos apresentam, terão na leitura desse ensaio uma desconfortável sensação de que estão enganados.
Para Ferraz, grande parte da classe política e dos cidadãos brasileiros tem “uma visão simplificadora, idealizada e infantilizada de democracia”. Essa visão, diz ele, dá margem a “soluções fáceis”, quase sempre na direção do paternalismo e do autoritarismo. Basta ver a quantidade de Constituições e de reformas constitucionais que o Brasil já teve para perceber que, de fato, o padrão nacional é de instabilidade.
No Brasil alteram-se regras essenciais ao sabor das conveniências. A atual “reforma política”, cujo debate está envenenado por interesses particulares dos principais protagonistas, prova essa fragilidade. Não se busca uma reforma para consolidar instituições democráticas, mas para atender a objetivos passageiros e paroquiais. É uma reforma que, inevitavelmente, resultará em algo que deverá ser reformado num futuro próximo, perpetuando o improviso.
Ademais, aqui não se lida com o contraditório como próprio das democracias, travado no âmbito das instituições. O debate tem sido pautado nas ruas e vem sempre carregado de ódio, numa polarização inconciliável. A busca pelo poder tornou-se o valor central, a despeito de qualquer outra consideração. Não à toa, o centro do turbilhão político brasileiro é ocupado há anos pelo PT, que, embora se jacte de seu espírito democrático, nunca aceitou o contraditório, sempre foi radicalmente contrário a todas as iniciativas dos governos aos quais fez oposição e, uma vez no poder, julgando-se portador da verdade histórica, tratou de desqualificar seus opositores como inimigos do próprio Estado.
O problema é o que o PT e seus assemelhados entendem por democracia. Com a leitura do trabalho de Ferraz, fica claro que a democracia ao gosto petista é a flácida o bastante para lhe permitir aparelhar o Estado e sujeitar o funcionamento das instituições a seus imperativos, quase sempre ao arrepio dos interesses nacionais. Em democracias desse tipo, diz Ferraz, “tudo está sempre em questão e nada é sagrado para todos, o consenso mínimo é frágil e a independência e a autonomia das instituições estão sempre expostas ao risco de serem subordinadas a interesses setoriais, partidários e de curto prazo”.
Quando o controle do poder se vê sob ameaça, a estratégia é minar o sistema representativo em si mesmo. É sintomático que em épocas de crise, como a atual, os petistas levantem a bandeira da democracia dita “direta”. Na narrativa que lhes é conveniente, seria uma consequência natural do suposto avanço da consciência democrática dos brasileiros, traduzido pelas manifestações de junho de 2013.
Mas, como mostra Ferraz, o apelo a ações diretas para articular as insatisfações e os protestos “é sempre um indicador de que as instituições políticas não funcionam satisfatoriamente”. E adverte: “Muitos, ingenuamente, consideram que esses são momentos áureos da democracia. Não são”. O poder deve ser entregue a quem possa ser responsabilizado por seu mau uso – e a massa é, por definição, inimputável. Eis por que a democracia direta, defendida como a forma mais pura e radical de democracia, sempre serviu apenas dar um verniz de legitimidade a tiranias.
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