quarta-feira, 2 de março de 2022

A distância entre eles

Num restaurante tradicional de Brasilia, as crianças riam divertidas. Pediam batatas fritas, sucos. Depois, o jantar, e, ao final, a sobremesa preferida. Nada lhes era negado. Os adultos, distraídos entre uma taça de vinho e uma dose de uísque, monitoravam o grupo ruidoso. Em nome de um pretenso sossego, permitiam até o desperdício.

De repente, o toque inesperado no ombro. O cumprimento sorridente e a realidade crua da desigualdade social. O contraste, a distância, surgiram implacáveis na forma daquele menino alto, magro, sorridente. Estava ali Kauã, que, muitas vezes, quando criança, vinha com sua mãe para o trabalho, e frequentava com os meus netos aquela mesa de restaurante.

Kauã oferecia rosas vermelhas, de mesa em mesa. Entrara no universo inclemente, perverso. Mais velho que os meninos, a vida o jogara na noite, não para se divertir. Para ganhar uns trocados.

Um soco no estomago.


Por sorte, aquele menino bonito não abandonara a escola. Não perdera o sorriso. Trabalha nos finais de semana. Continua parceiro da mãe, quer ajudá-la, e ter seu próprio dinheiro. O ângulo positivo da história não consola. Dói ainda mais. Adolescência perdida.Tantos passeios fizera com meus netos. Tamanha dissonância entre o que vive hoje Kauã e o que vivem os filhos do privilégio.

Há o que fazer por ele. A indicação de trabalho diurno, mais segurança para um menino de 16 anos. Há o que fazer sempre. E os outros Kauãs? Pequenos e grandes, crianças que nos abordam na noite? O que fazer por eles?

Fundamental não permitir que continuem invisíveis.

Kauã não é indigente. Mas a miséria assola o País, exige medidas urgentes. Levantamentos da FGV Social indicam que quase 28 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da linha da pobreza no Brasil. Em 2019, antes da pandemia de Covid-19, eram pouco mais de 23 milhões brasileiros.

É vital um governo voltado para pobres e desvalidos É obrigatório e urgente que os miseráveis voltem a ter comida na mesa, e as crianças possam sonhar em viver e estudar à luz do dia.

Passa da hora de nos posicionarmos. Só um governo comprometido em combater a carestia e a ignorância poderá tirar das ruas crianças, jovens, sem teto, abandonados à própria sorte. Brasileiros abandonados que se multiplicam tomando calçadas de todas as cidades, morrendo de fome, de frio, de medo.

O Brasil pede socorro. É remota a possibilidade de reeleição de Bolsonaro, mas, acreditemos, não é impossível. Ou reagimos agora ou não teremos tempo de impedir um novo mandato ruinoso, catastrófico, devastador, multiplicando Kauãs cada vez mais sem esperança.

PS: A distância entre eles me remeteu a Thrity Umrigar, jornalista, professora e romancista de origem indiano-americana, autora, entre outros, de “A distância entre nós”. Na complexidade da Índia dividida pela extrema pobreza e a riqueza visível, Umrigar trata desses dois mundos, observando duas solidões – duas mulheres, Bhima, analfabeta, hindu de casta mais inferior, e sua patroa, Sera, viúva aristocrática parsi. Elas compartilham anos de intimidade. Todas as manhãs, Bhima deixa seu casebre de barro na favela miserável onde vive, para cozinhar e limpar a casa de Sera. Os diálogos valem o livro de Umrigar. Livro para não esquecer.

PS1: Não há mocinhos na Guerra da Rússia contra Ucrânia. A humanidade pagará a conta da insana e letal disputa entre Rússia, Estados Unidos, OTAN, e o resto do mundo.

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