terça-feira, 25 de maio de 2021

A lenta erosão da liberdade

Faço parte de uma geração que recebeu dos seus pais um País que tinha recentemente emergido de quatro décadas de ditadura. Um País que deixara para trás anos de imobilismo social, de pobreza, de atrofia do pensamento. Um País que se abrira ao mundo, que conquistara a liberdade de traçar o seu próprio destino.

Faço parte de uma geração que recebeu dos seus pais um País que era largamente uma promessa por e para cumprir. Não há, convenhamos, privilégio maior. Herdámos a liberdade de fazer o nosso próprio futuro.


Infelizmente, estou cada vez menos seguro de fazer parte de uma geração que transmitirá aos seus próprios filhos, esperançoso e incólume, o legado que recebeu: a liberdade de voltar a fazer o futuro que será o seu. Pode parecer paradoxal, quase ofensivo para quem por ela tanto lutou, mas vou consolidando a ideia de que um dos nossos maiores falhanços coletivos dos últimos 30 anos foi termos sido complacentes com a lenta erosão da liberdade na sociedade portuguesa.

É evidente que não me refiro às liberdades formais conquistadas no 25 de Abril. Tal como nós, os nossos filhos votam em liberdade. Tal como nós, vivem num mundo sem os lápis azuis da censura estatal, sem polícias políticas. E, no entanto, não é verdade que sejam inteiramente livres.

Herdarão, desde logo, os desmandos das nossas políticas económicas. Herdarão um País que não cresce há duas décadas, mas, muito pior, herdarão um País que empurrou para as gerações futuras o ónus de pagar esse nosso falhanço. A dívida, colossal, com que os brindaremos é obviamente cerceadora da sua liberdade. Fecha-lhes caminhos, corta-lhes opções, impede-os de poder escrever, como nós pudemos, o seu próprio futuro.

O mesmo se pode dizer da herança que lhes deixaremos em termos ambientais. Também nesta matéria, usámos o que era nosso e o que deveria ser seu. Deixamos-lhes um planeta crescentemente ameaçado e pedir-lhes-emos que paguem, com a ausência de alternativas, um esforço colossal para o salvar.

Como se não bastasse, herdarão, além do mais, um País bloqueado em termos políticos. Ao longo dos últimos 30 anos, fizemo-nos, funcionários públicos e respetivas famílias, cidadãos tragicamente dependentes de ajudas públicas, mas também “empresários de sucesso” resgatados pelo erário público, crescentemente dependentes de um Estado gordo e ineficiente, que não parou de alargar os seus tentáculos (o mito de que fomos governados por políticas neoliberais é um dos mais bizarros da história económica recente). E se é verdade que os nossos filhos continuarão a votar com total liberdade formal, não me parece difícil de sustentar a tese segundo a qual as opções de que dispõem são mais aparentes do que reais. A paralisia económica, a captura da economia pelo Estado, limita, de facto, a verdadeira alternância política. Uma democracia substantiva precisa de eleitores livres. E definha quando se faz apenas de clientelas.

Por fim, a liberdade de expressão já viveu melhores dias. Não tanto porque não tenhamos (por enquanto) uma Imprensa essencialmente livre (que falha, todavia, ao não resistir ao abraço de urso das ajudas estatais), mas porque o ambiente tóxico das redes sociais, as guerras culturais e as suas agendas de “cancelamento” e a polarização da sociedade tornam, de facto, cada vez mais exíguo o espaço da liberdade de expressão efetiva.

Perdoem-me esta crónica tão sombria. Ainda vamos a tempo de honrar os deveres de uma geração. Mas isso não se fará com mais complacência.

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