quinta-feira, 1 de março de 2018

Os animais doidos de cólera

O que vou contar, ainda não aconteceu. Mas acontecerá, quando não sei, talvez daqui por quinhentos ou mil anos, precisamente (arrisco a profecia) em 2968. Qual venha ser o primeiro animal a endoidecer de cólera, não o diria mesmo que soubesse, porque o mais certo era acabarem-lhe já com a espécie, na mira de evitar a catástrofe. E eu, que não estarei cá para ver, eu, a quem o assunto por isso não interessa pessoalmente, não vejo por que hei-de poupar uns vagos e longínquos vindouros à maior guerra da história. Já não é pequeno favor este aviso. Cumpram-se pois os fados.

Em todo o caso, alguma coisa me diz que a primeira rebelião virá de um animal pacífico. Talvez o cão, talvez a calhandra. Ou a rola, hoje tão modesta e conformada. Não sei, não sei. Agora mesmo (vá lá explicar porque) tive a certeza de que será o potro. Vi-o no meio de um prado, com erva até os joelhos, o sol a acender-lhe fogachos no pelo sedoso - e de repente erguer-se nas patas traseiras, esgrimir os cascos, de crina revolta e beiços arreganhados de furor. E se aqui deixo, afinal, esta revelação, é só porque sei que, no fundo, ninguém vai acreditar-me.

Resultado de imagem para a revolução dos bichos ilustração

Será o primeiro sinal. O potro sairá do prado verde e meterá as estradas dos homens. Por onde passa, levanta o motim, desperta a cólera, bate com as patas nos troncos das árvores e nas tocas sombrias. Ergue a cabeça transfigurada para as nuvens e chama as aves do céu. Por todo o mundo começa a mover-se o grande exército dos animais.

Ao princípio, os homens ficam surpreendidos. Depois, o interesse científico leva-os a sobrevoar de helicóptero as manadas e rebanhos, os insetos alados e os bandos de pássaros, os intermináveis cortejos de lagartas e formigas. Tiram fotografias e escrevem relatórios e reportagens. Colhem aqui e além um animal crispado, estudam-lhe o comportamento, vivissectam e dissecam - e nada encontram, porque não há vírus da ira nem micróbio da fúria.

Quando os animais se tornam incômodos, os homens põem em uso a panóplia doméstica dos pequenos conflitos: armas de caça, inseticidas, redes, venenos, armadilhas. Mas os animais são inúmeros. Surgem de todos os lados e cercam as cidades. E não adianta contar com a inimizade do cão e do gato, nem com o gosto do leão pela carne da gazela. Os animais alimentam-se de sua própria cólera. Então os homens substituem o DDT pelo TNT, a caçadeira pela bomba atômica, o papel apanha-moscas pelos gases. É inútil. Sobre os cadáveres de uns, avançam outros. Dos esgotos saem exércitos de ratos enfurecidos. As toupeiras cegas abrem caminho a longas serpentes que dormiam no interior da terra. As noites são povoadas de rumores estranhos: sussurros, pulsões de asas, guinchos, crepitações de mandíbulas secas, uivos e rugidos, silvos arrepiantes. E quando o dia nasce, os homens, pálidos de insônia e medo, lêem nos jornais que uma esquadra inteira foi afundada por monstros marinhos e que trezentos aviões caíram com os reatores asfixiados de penas e carne triturada.

Virá então o pânico. A cólera dos animais cresce até se transformar em loucura de extermínio. Os homens perguntaram uns aos outros o que fizeram para merecer esta condenação. Não podem enviar parlamentares porque os animais não falam. E se falassem, a cólera cortar-lhes-ia a voz.

Que fazer? que fazer? São chamados os sábios e os filósofos - e ninguém traz salvação. Vêm os políticos e os engenheiros - e calam-se. Pede-se auxílio a toda gente, velhos, adolescentes, crianças - e nada. Dão-se alvíssaras. O mundo dos homens vai acabar.

Talvez acabe mesmo. E se os animais vierem a endoidecer de cólera e desencadearem esta guerra (em 2968, por exemplo), ao menos o último homem, coberto de formigas que o estraçalham, ainda poderá pensar que morre a lutar pela humanidade. Não contra a humanidade... E será a primeira vez que tal acontece.
José Saramago

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